O sonho de Vanka

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

 

Os contos de Anton Tchekhov rondam minha mesinha de cabeceira. Às vezes, tenho a impressão de que são mensageiros, que me trazem ideias a respeito das circunstâncias que estou vivendo ou mesmo para construir textos. Ele escreve situações rotineiras de tal forma que seus textos invadem minha alma e desvelam as questões existenciais dos personagens, permitindo que o leitor vislumbre situações extremosas de vida, descrevendo a amplitude dos sentimentos mais intensos que uma situação pode causar. Como escritor versátil, ele se veste de homem, mulher, criança, patrão, empregado, conseguindo ir da alegria ao sofrimento com simplicidade e profundidade, mostrando cenas em que, personagens e cenários, ficam misturados com as contradições e perversidades que existem na vida. 

Há alguns dias que o conto Vanka me toca, talvez por mostrar a situação de penúria de uma criança. Nesse conto, Vanka Júkov é um menino de 9 anos, aprendiz de sapateiro, que escreve, quando seus patões e ajudantes saem para assistir à missa de natal da meia-noite, uma carta ao avô, seu único parente vivo. Ajoelhado diante de um banco, sob a luz de vela, entre suspiros aflitos e olhares esguelhados para as portas e janelas, com uma caneta de pena enferrujada e numa folha de papel amarrotada, pede-lhe que o leve daquele lugar, onde mora e trabalha, para a aldeia, devido aos maus tratos que sofre. O conto termina quando Vanka dorme e sonha com seu avô recebendo a carta.

É um conto doloroso de se ler pelo modo realista e contundente com que Tchekhov compõe o texto, que descreve modos de viver na gélida Rússia no século retrasado. O conto pode ser refletido sobe vários pontos de vista, mas aqui, hoje, não sei exatamente o motivo, gostaria de apontar para o sonho, enquanto acalanto, refúgio ou realização de uma vontade não realizada, pelo fato de a circunstância apresentar dificuldades ou mesmo impossível de ser modificada. 

O sonho recebe várias explicações que abrangem religião, psicanálise, ciência e cultura. Pode ser explicado como premonição, expressão de um desejo reprimido ou subproduto da atividade cerebral. Nesse conto, talvez seja uma reação à certeza de Vanka de que a carta não será entregue ao avô.

Ah, a literatura... tão atual... 

Ah, as doenças incuráveis... os incêndios nas matas... a bomba atômica... as dívidas impagáveis... o efêmero. 

 

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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