Dalva Ventura
Passamos quase duas horas conversando sobre a Friburgo de ontem e de hoje, do jornal da nossa família, das dificuldades enfrentadas pela chamada "pequena imprensa”, seu relacionamento com o poder e, é claro, sobre a sua emoção ao ser escolhido para integrar a Academia Brasileira de Letras, tornando-se, assim, um imortal. Esta entrevista é um presente de A VOZ DA SERRA para nossos leitores.
A VOZ DA SERRA - Zuenir, vamos começar nosso papo falando de Friburgo. O que sente quando vem aqui?
Zuenir - Ah, acho que a palavra que melhor define a minha sensação é nostalgia. Meu coração bate diferente quando chego aqui. Uma saudade muito grande daquela Friburgo onde passei toda minha adolescência e uma boa parte da juventude.
Friburgo mudou muito...
Demais, quase não dá para reconhecer. Como quase toda cidade mediana, Friburgo foi contaminada por todas as mazelas das metrópolis. Engarramentos na Alberto Braune, violência urbana, tudo isso me entristece. Numa das vezes em que vim, eu quis revisitar a casa onde vivi. Ela fica no alto do Cordoeira, numa rua que meu pai abriu na base da enxada, com suas próprias mãos e que hoje tem o nome de minha avó, Elisa Ventura. Pois bem, no meio do caminho encontrei uns senhores que me disseram para não subir porque era perigoso. Uma facção do narcotráfico tinha dominado a região. No entanto, as lembranças boas de Friburgo são muito mais fortes que esta sensação desagradável de constatar como a cidade mudou. E para pior.
Sim, e todos nós que conhecemos a Friburgo de antes lamentamos muito tudo isso.
Sabe, quando a gente sai vou mostrando à minha mulher. Olha, ali morava minha tia, veja, a Camisaria Friburgo onde trabalhei ainda existe, aquela casa ainda está de pé. No entanto, da Friburgo do meu tempo, pouca coisa restou, a maior parte foi derrubada. Não tem como não sentir saudade.
Sem falar nas perdas...
É, até pela idade [Zuenir tem 83 anos] muitos amigos meus ficaram no meio do caminho. Hoje, quando entrei aqui no jornal e vi as fotos do Meco e do Laercio, fiquei muito emocionado. Laercio, meu primo e amigo, com quem fiz muita farra na juventude, era a primeira pessoa que eu visitava quando chegava em Friburgo. Senti sua morte como a de um irmão, até porque continuamos amigos demais. Meco, meu tio, por quem sempre tive muito respeito e admiração, que era o guru, a referência de toda a família. Assim como papai, como Laercio, de uma integridade, um rigor ético muito grande. Ele era uma figura extraordinária. Basta dizer que o Meco foi, no seu tempo, a pessoa mais importante da prefeitura, qualquer que fosse o prefeito. Tudo passava por ele. Neste momento, com todos estes escândalos, toda a corrupção, difícil imaginar hoje que uma pessoa com todo aquele poder morreu pobre. Pobre e poderoso.
E nosso jornal, Zu, fale de A VOZ DA SERRA como jornalista e não como uma pessoa da família.
Sou leitor do jornal, faço questão de dizer isso, publicamente. Espero com ansiedade que ele chegue a minha casa e percebo claramente as mudanças para melhor. A VOZ DA SERRA evoluiu muito. É hoje um jornal moderno, que nada fica a dever aos jornais do Rio ou de São Paulo, com conteúdo, ótimos colunistas, muito bem diagramado. A primeira página é um primor. E, enquanto tantos sucumbiram, o jornal mostra diariamente sua vitalidade, o que, de certa forma, me surpreende.
Não é fácil...
Não é. Eu costumo dizer que fácil é fazer jornal no Rio. Quero ver é fazer jornal em Friburgo. São dificuldades de toda a ordem. De anunciantes, de pessoal qualificado, de equipamento e até de leitores que, como dizia Nelson Rodrigues, no interior as pessoas costumam sofrer de um "complexo de vira-lata”, ou seja, elas preferem os jornais de fora, o que é um contrassenso. Isso, inclusive, vai contra toda uma tendência, pois é muito mais importante o que acontece na nossa cidade, no nosso quintal, do que o que acontece fora.
É, como você estava me dizendo antes da entrevista, "um trabalho heroico”.
Sem dúvida. São muitos os problemas que vocês enfrentam no dia a dia. A começar pelo relacionamento com o poder público, que considera as críticas como agressões em vez de encará-las como uma contribuição. Os presidentes, governadores, prefeitos, todos costumam ver a imprensa por este ângulo e não deveria ser assim. Isso nada mais é que censura, algo terrível, que jamais deveria existir. O Lula uma vez, brincando, declarou: "Jornal bom é aquele que fala bem da gente”. Mas tenho que fazer justiça ao prefeito do Rio, Eduardo Paes, que é incapaz de agir assim. Nunca tirou anúncios de O Globo ou reclamou com a direção porque "falaram mal dele”. É incapaz de agir assim. Pelo contrário, quando o jornal mostra um buraco na rua, ele manda consertar. Encara as críticas como uma contribuição, não como uma agressão. E olha, o que eu já bati nele não é brincadeira. E quando me encontra, diz com o maior bom humor: "Vou reclamar com a Mary, hein?” Já perguntamos a ele porque apanha tanto da gente e não age como os demais. E ele responde que não quer um jornalismo chapa branca, até porque o leitor percebe.
Pois é... são muitos os desafios a encarar, como você fala.
Em alguns momentos cheguei a pensar que o jornal não iria aguentar esta parada. O Laercio passava noites e noites em claro pensando em como resolveria tantos problemas. Era o pagamento do pessoal — que jamais atrasou um só dia — a máquina que quebrava, mil problemas para resolver. Conversava muito com Laercio e eu sempre ficava com medo de A VOZ DA SERRA acabar ou sair da nossa família, o que seria uma forma dele próprio acabar. E agora, quando converso com Adriana, vejo que nada mudou. Ela herdou as mesmas dificuldades de seu avô e de seu pai.
E o Zuenir Ventura imortal?
Ah, estou vivendo um momento muito especial. Uma conquista ter sido escolhido por meus pares para a Academia, por ter tido 35 votos dos 37 acadêmicos. Fiquei muito feliz por passar a integrar uma instituição secular, fundada por Machado de Assis, onde estão muitos dos maiores escritores brasileiros. Sinto como se fosse começar uma nova fase da minha vida. O perigo é começar a pensar como se fosse mesmo um imortal (risos).
E o que você está fazendo no momento?
Um musical sobre a chamada terceira idade que vai se chamar "Bárbara Idade”, com meus grandes amigos Luiz Fernando Veríssimo, Ziraldo e Ana Roditi, minha nora. Vai estrear dia 16 de março, dias depois da minha posse na Academia e logo depois das comemorações dos 70 anos da nossa Voz, três efemerides muito importantes na minha vida. Nossa ideia não é passar que a velhice seja sinônimo de sofrimento, mas mostrar que ela pode até ser engraçada. Basta falar num dos números, o "Rap de Esquecimento”. O nome já diz tudo, não é?
Como você dá conta de tantos compromissos, como a coluna do Globo (duas semanais), as palestras que o levam a viajar tanto e agora, a peça?
Em primeiro lugar, porque tenho saúde, isso é fundamental. Depois, porque tenho disposição, prazer no que faço.
Todo este assédio em torno de você, principalmente depois de ter se tornado imortal, incomoda?
Não. Encaro tudo isso como uma generosidade para comigo. Gosto das pessoas gostarem de mim. Claro que tem os chatos, são muito desagradáveis, que querem mostrar uma intimidade que não existe ou que se aproximam não como uma homenagem, mas por interesse. E também de gente que fica me alugando, mas estes são uma minoria. Mas nem eles eu consigo despachar. Sou muito vaselina. Quem me tira destas situações, não param de falar, geralmente é a Mary.
Zuenir, não posso terminar esta entrevista sem te pedir para nos contar como era sua vida nos anos em que viveu aqui.
Foi assim, muito variada, mas também muito feliz. Com 11 anos, eu já trabalhava com meu pai, que era pintor de paredes. Depois fui contínuo num laboratório de próteses, balconista e, finalmente, passei a lecionar de manhã no primário do Colégio Cêfel para poder estudar. Lá descobri o que queria na vida, isto é, dar aulas. Tenho grandes recordações do Cêfel. Foi lá que conheci dona Leticia Pinto, recém-chegada de Campos, uma mulher muito arrojada e culta, que abriu minha cabeça, que era minha conselheira, minha referência cultural. Foi ela, por exemplo, quem me deu o primeiro Proust para ler. Nós nos reuníamos na casa de dona Leticia — eu, o "André Maluco” (André Oliveira), a Tereza Barroso, a Marina Cúrio, para discutir filosofia, literatura, comportamento, sexo. As três eram muito amigas e eu, amigo das três. A saudade aperta quando penso nelas. Paralelamente, jogava basquete, inclusive era tido como um bom jogador, ganhei até o apelido de "divino mestre”. Foi um tempo bom, muito bom. Nossa família era pobre, mas não miserável. Eu subia aqueles três morros várias vezes por dia até chegar à minha casa, no "campo da montanha”. Sem problemas.
E os amigos? Não podemos deixar de falar deles.
Bem, minha turma era mais do basquete. O Antônio Aucar, o Salame, o Almir, o Carlinhos da Fundação, que estava chegando à cidade, o Mauro Mendonça, ele mesmo, o ator... E quando falo dos amigos do basquete, me desculpem se esqueci alguns, até porque eram muitos... É a idade (risos).
Vamos falar mais de Friburgo...
Era uma cidade tão tranquila... Não tinha ônibus, só bicicleta e eu, nem bicicleta tinha. Só fui ter a minha quando entrei para o Tiro de Guerra. Friburgo era bem mais fria do que agora, de noite a neblina não deixava você enxergar as pessoas. Eu vi a Rádio Friburgo nascer. A VOZ DA SERRA estava começando. E Friburgo ficava a uma distância enorme do Rio ou de Niterói. Não havia estrada, só era possível viajar de trem, que levava horas para chegar aqui. Era, assim, uma cidade muito isolada, principalmente do ponto de vista cultural e de comportamento.
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