"Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim"

Conheça o primeiro coletivo feminista de Nova Friburgo
terça-feira, 08 de março de 2016
por Ana Blue
(Foto: Pexels)
(Foto: Pexels)

Cadê meu celular? Eu vou ligar pro um oito zero/Vou entregar teu nome e explicar meu endereço/Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço/E jogo água fervendo se você se aventurar”

Tudo bem que ‘jogar água fervendo’ é uma cena bastante forte pra gente imaginar, mas o sentido não podia ser mais didático: você vai se arrepender de levantar a mão pra mim. A letra da música “Maria da Vila Matilde – Porque se a da Penha é brava, imagina a da Vila Matilde”, da sempre libertária Elza Soares, expressa uma realidade muito longe de ser ideal: a violência contra a mulher — que em 80% dos casos é proveniente do próprio parceiro, dos quais 32% acontecem diariamente. Expressa a violência, sim, mas de uma forma contundente, empoderada: não vou ficar calada, filho, vou ligar para o um oito zero.

Fora a violência física, que por sua natureza é a que nos causa maior impacto, a mulher ainda é, em pleno ano da graça de 2016, alvo de diversos outros tipos de sevícia. Assédio moral e sexual, desigualdades salariais e outras oriundas de organogramas patriarcais em que posições de decisão não são destinadas às mulheres. Aborto, estupro, padrões irreais de beleza e comportamento. Desrespeito, descaso, políticas públicas ineficientes. Violência médica, institucional, obstétrica. Quanto mais há de crescer essa lista?

Nesse contexto, duas amigas de Nova Friburgo resolveram fazer alguma coisa. Sim, era preciso. Sim, é preciso sempre. Sim, não é mimimi, nem falta de homem. Muito menos falta do que fazer. É falta de mais água fervendo. 

Coletivo feminista de Nova Friburgo

E assim nasceu, em 2015, o primeiro coletivo feminista de Nova Friburgo, através da iniciativa de Rafaella Jaeger e Bárbara Monnerat. O grupo, que se articula através de redes sociais e promove encontros periodicamente entre os membros, conta já com 492 mulheres. “A ideia surgiu quando eu descobri a vertente da Rafaella, que é a mesma que a minha, o feminismo radical. Daí começamos a conversar e eu comentei com ela sobre eu me sentir sozinha em Friburgo quanto ao feminismo, porque até então não tinha nenhuma movimentação estruturada. A conversa culminou com a criação do grupo”, conta Bárbara.

Entre as participantes, tudo é miscelânea. Da idade à profissão, de estilo a opinião, tudo é mistura — uma mistura consolidada, organizada e produtiva que, de alguma maneira, dá certo. Como é Dia da Mulher —  neste caderno optamos por não dar ênfase à origem da data, dadas as controvérsias a respeito, mas sim ao seu significado — o Light pediu ao coletivo que dividisse com os leitores um pouco da visão feminista sobre assuntos discutidos amplamente atualmente, graças a uma revolução feminina constante, de mulheres que não se furtam a denunciar via um oito zero, um nove zero, Justiça, feed de notícias, blogs, canais de vídeo, TV, cinema... Confira:

Aborto

“Muito me assusta quando vejo pessoas demonizando as feministas e nossa opinião sobre o aborto. É como se pensassem que queremos que o aborto vire uma regra, uma obrigação e não que queremos o direito de escolha e a segurança para lidarmos com essa escolha. Queremos salvar a vida de mulheres e mudar os números que dizem que diariamente muitas morrem tentando abortar. Queremos ter filhos porque queremos e não como algo que nos é imposto. O que precisam entender é que, sendo proibido ou não, sendo porque simplesmente não querem um filho, ou porque são muito novas, ou não têm condições para cuidar de uma criança, ou por alguma doença, ou pelo motivo que seja, mulheres sempre irão abortar. E umas terão o dinheiro necessário para sobreviver a isso e outras não. Morrerão tentando”. (Débora Nacarati)

 “As mulheres já fazem, mas morrem por causa de abortos clandestinos. Quem mais sofre com a criminalização são as mulheres pobres. A descriminalização é questão de saúde pública e de exercício da autonomia feminina”. (Carolina Floro)

“Sobre o aborto, primeiramente, acho um absurdo homens quererem criar leis sobre o corpo das mulheres. Segundo ponto: o nosso Estado é laico, então quanto ao aborto não pode haver nenhum envolvimento religioso sobre o assunto/decisão. O que é um enfrentamento pesado, que deve ser feito. E outra: temos que parar de achar que a mulher precisa e deve ter esse lado maternal com o filho, como se fosse um dom que todas as mulheres têm”. (Carolina Heringer)

“Eu não deveria precisar falar sobre o direito ao aborto, em pleno 2016, porque nossa sociedade já deveria ter aprendido que é um direito da mulher. Seu direito de escolha ética pessoal e um direito de escolha do que fazer com o seu corpo, mas que lhe é negado porque estamos numa sociedade machista e controladora dos corpos das mulheres — o corpo material e o corpo simbólico delas — como uma forma de controlar a mulher e sua autonomia e mantê-la nesse lugar submetido ao poder, junto com tantas outras minorias que a estrutura dessa sociedade absurdamente machista precisa manter para funcionar, tal qual a máquina que já foi calibrada, que roda tão bem e ninguém quer mexer, não importa quanta desigualdade e injustiça a máquina produza”. (Fabiana Motroni)

Relações de trabalho

“As mulheres têm mais dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e aos estudos por conta da cultura machista que reforça o tempo todo que somos menos capazes, que somos naturalmente habilidosas para cuidar da casa e dos filhos, mas não para liderar e exercer outras atividades, principalmente na área de exatas ou trabalhos braçais. Além disso, quando temos filhos acabamos ficando com toda a carga de responsabilidades, e a sociedade acha que é suficiente o homem pagar uma pensão e ver os filhos de vez em quando. E quando você vai cobrar a pensão na Justiça ainda sofre com o machismo do judiciário, que é completamente ineficaz pra garantir os direitos de mulheres e crianças”. (Carolina Floro)

Sexualidade

“Sou lésbica e vivo na pele o preconceito, relacionamentos entre mulheres são vistos como objeto, homens e mulheres heterossexuais se acham no direito de pedir para ver ou participar, invadem nossa privacidade. E demonstrar afeto em público é resistência, é um ato político, porque recebemos muitos olhares tortos. Muita gente condena”. (Carolina Floro)

“Estamos em 2016 e homens acham que chamar uma mulher de ‘gostosa’ é um elogio pra ela, afinal, que identidade ela possui a não ser a identidade de ser desejada sexualmente e afetivamente por outro alguém? Ela pode ter uma profissão, ela pode até ser autônoma financeiramente, ela pode ser presidente de uma empresa, até presidente de um país, mas se ela não couber no molde da beleza e não estiver pronta para atender o desejo alheio, magra assim, bonita assado, peitos bundas e sorrisos, de preferência não negra e não gorda, se ela não for digna de ser exibida como troféu, todos os demais aspectos da sua identidade não importam. Ainda sofremos violência física e sexual por isso. Ainda somos assassinadas por isso”. (Fabiana Motroni) 

Violência obstétrica

“A violência existe sim. Principalmente contra as mulheres negras, no momento da dor do parto. Dizem a elas: ‘mulher negra aguenta mais; na hora de abrir a perna não doeu’. Isso é violência”. (Carolina Heringer)

“Como mãe, doula e educadora perinatal, me encontro dentro do coletivo muito tocada sob o prisma da violência contra a mulher, principalmente violência obstétrica. Essa danada ainda passa despercebida mesmo dentro do nosso universo feminino criado dentro dessa sociedade que, de forma geral, não vê benefício em orientar mulheres para serem donas dos seus próprios corpos e, consequentemente, protagonistas dos próprios partos. Os problemas acerca disso são numerosos e graves, como a falta de conhecimento do funcionamento do próprio aparelho reprodutor e a passividade diante de agressões físicas e psicológicas sofridas no parto. Dentro do coletivo somos uma e somos todas. Ao mesmo tempo que sofremos juntas, nos curamos juntas”. (Mica Borba)

Violência doméstica

“Muitas mulheres acham que só é violência se for física, mas há a violência sexual, psicológica e moral também. Aí entra um dado específico: as meninas menores muitas vezes se sentem culpadas e ficam caladas, perpetuando o abuso”. (Carolina Heringer)

“Eu demorei tempo demais para perceber que aquilo que acontecia dentro de casa era abusivo e criminoso. Fui vítima do gaslighting, uma prática onde o parceiro distorce suas percepções e memórias dos acontecimentos, de modo a fazê-la acreditar que você está louca. Ele chegava a verbalizar isso: ‘Eu prometi resolver tal problema? Quando? Você está louca. Já tomou seu remedinho hoje?’ O divórcio foi uma restauração dos cacos do que havia sobrado de mim”. (Géssica Fernandes)

Padrões

“Uma reflexão boa numa cidade como Friburgo, que tem uma indústria de lingerie tão importante economicamente, e que não pensa duas vezes em photoshopar absurdamente o corpo de modelos já forçadamente magras, já forçadamente não negras, já forçadamente uma não mulher, uma não pessoa, para que elas caibam no corpo inventado das lingeries e do mercado publicitário e da indústria da moda, que não só não representa as mulheres de verdade, que são suas consumidoras, como as violenta simbolicamente a cada outdoor novo na cidade e a cada ‘não tem seu tamanho’ que a gente ouve nas lojas”. (Fabiana Motroni)

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TAGS: dia da mulher | feminismo | lutas sociais | violência doméstica
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