Maurício Siaines (*)
O Grupo Euclidiano de Atividades Culturais (Geac), de Cantagalo (RJ), promove neste final de semana uma série de atividades relacionadas com Euclides da Cunha, como celebração do centenário de sua morte. Faz parte da programação o Seminário Internacional 100 anos sem Euclides, que reúne estudiosos brasileiros e estrangeiros, com vários enfoques sobre o significado da vida e da obra do escritor. O tema, porém, vai além de Cantagalo, permite uma reflexão sobre o Brasil.
Euclides da Cunha havia sido um jovem estudante muito aplicado, que encontrou na escola militar a possibilidade de continuar seus estudos e até mesmo ganhar uma bolsa para fazê-lo, além de dispor de alojamento e vestuário. Era o único curso de nível superior onde existia esse investimento nos alunos no Brasil do império. Não se tratava de uma instituição onde se estudavam apenas questões militares, mas a matemática e a física, além do que era o que havia de mais avançado em tecnologia, podendo o estudante formar-se em engenharia.
Na Academia da Praia Vermelha, como era conhecida a escola militar, Euclides entrou em contato com intelectuais positivistas como Benjamin Constant, então professor na instituição. Foi expulso da Academia, em 1888, por manifestar ostensivamente suas opiniões republicanas, sendo reintegrado depois de instituída a república, reconhecido como herói.
Sua formação positivista levava-o a uma visão da ciência que poderíamos hoje chamar de banal, ou banalizadora, a uma concepção de civilização calcada em rígidos modelos europeus. Além da formação em matemática e física, encontra-se também em Euclides um grande apego à literatura clássica grega, a que recorre com frequência.
Com essa bagagem cultural, ele se dirigiu ao sertão da Bahia, em 1897, como repórter do jornal O Estado de São Paulo, para cobrir a quarta expedição militar contra o arraial de Canudos, criado pelos sertanejos liderados pelo beato Antônio Conselheiro. Com suas convicções, Euclides entendia o acontecimento como uma revolta monarquista, ou como um movimento do que ele chamou de “incompreensível e bárbaro inimigo”.
Quando entrou em contato com a realidade do sertão e com um fenômeno que surpreendeu seu entendimento, apesar de toda sua ciência, quando testemunhou a ação brutal do Estado brasileiro contra aquela população, através do Exército, Euclides mudou de posição e, se antes via o homem do interior do Nordeste como um ser inferior, passou a entendê-lo como um herói, no melhor estilo homérico. Daí nasce sua célebre frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
Se o tradutor de Os sertões para o alemão, Berthold Zilly, tem razão, quando diz que o livro é o mito fundador do Brasil, o evento de Cantagalo é importante também para provocar a reflexão a respeito das atitudes possíveis do Brasil diante de si próprio. Afinal, um mito é um modo de uma sociedade pensar sobre si própria, sobre os valores que a norteiam, sobre a ordem em que ela se funda. A mudança de posição de Euclides da Cunha é algo notável e que vale a pena pensar a respeito. É preciso que se exercite a sensibilidade para que se possa, tal como Euclides, perceber e entender coisas que estão próximas, mas invisíveis e incompreensíveis.
Euclides da Cunha certamente não foi o principal estudioso do que aconteceu no sertão da Bahia entre 1893 e 1897. A questão é que, se não fosse ele, com Os sertões, não teriam existido os outros, que tanto contribuíram para a compreensão de um acontecimento tão marcante e significante na história do Brasil. Se não tivesse acontecido Os sertões, talvez fosse esquecido o fenômeno de Canudos, que tanto representa da história e da vida social brasileira. O fato e a versão se confundem, mas, se não fosse a versão de Euclides, pouco se saberia daquele acontecimento, cujo desfecho trágico é descrito da seguinte maneira: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 [de outubro de 1897], ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”
(*) Jornalista – mauriciosiaines@gmail.com
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