Dalva Ventura
O tema parece batido, mas nunca é demais reprisar. Na semana passada mesmo, a procuradora Ana Alice Moreira de Melo, de 35 anos, foi morta a facadas dentro da casa onde morava com os filhos do casal, em um condomínio de luxo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Após o crime, o empresário Djalma Brugnara, acusado de ser o assassino de sua ex-mulher, teria se suicidado. O casal tinha dois filhos, que estão sob os cuidados dos avós maternos.
Pois é, ao contrário do que muita gente imagina a violência doméstica não escolhe classe social e econômica. Também independe de nível intelectual. Está ao nosso lado, em todos os bairros, não só nos morros e comunidades mais carentes, mas também nas residências e condomínios de classe alta.
Vejam a história de Neuza, que depois de anos de maus-tratos, um dia resolveu procurar o Crem (Centro de Referência da Mulher) para tentar se livrar de sua via crucis. Neuza é uma mulher bonita, vaidosa, independente e muito simpática. Trabalha há anos como secretária executiva, é muito ligada à família, gosta de se divertir, enfim, uma mulher comum, como eu e você. Quem a conhece assim, superficialmente, jamais pode imaginar como é a sua vida dentro de casa. Sua história, aliás, não teria nada de especial, se não fosse idêntica a de milhares de mulheres pelo país afora. Vítima de um marido possessivo e ciumento, Neuza simplesmente não tem forças para se libertar desse homem que a maltrata, humilha e espanca.
Como é que pode? Por que estas mulheres infelizes, que sofrem na carne a tal da violência doméstica, simplesmente não se separam? É o que todos se perguntam. A resposta é complexa, mas Neuza dá uma pista.
“A química continua...”
Só mesmo a tal da química pode explicar o fato de uma mulher como ela se submeter a tantos maus-tratos e há tanto tempo. De casamento, são 13 anos. As marcas são muitas. As da alma são invisíveis, mas ela carrega no corpo cicatrizes causadas por pontapés, chutes, tapas na cara e outras agressões. Neuza se rende às maldades desta criatura com quem divide a vida e a cama desde o tempo de namoro, mas a violência propriamente dita só começou quando Neuza engravidou.
“Ele descobriu que não gostava de mulher grávida e me dizia isso com todas as letras. Começou a chegar de madrugada e até a levar outras mulheres para dentro de casa, achando que tinha todo o direito de fazer aquilo, já que eu estava, como ele dizia, ‘naquela situação’. Aliás, homem violento é assim, acha que a gente tem que aceitar tudo.”
Na época, Neuza não acreditava nos alertas de seu pai e de sua mãe, que estranhavam os ciúmes excessivos e a possessividade de seu namorado. Não chegava a ser agressivo, mas o relacionamento já era muito conturbado.
“Ele me controlava dia e noite, implicava até com minhas unhas, deixei de lado as minhas amigas, tínhamos tremendos arranca-rabos, mas até aí não achava nada de mais, me sentia até envaidecida com aquilo. Chegava a empinar o peito, achando que era uma demonstração de amor. Por isso mesmo, eu vivo repetindo para quem quiser ouvir, fujam de namorados ciumentos, que tentam te aprisionar!”
Não faltaram alertas, mas mesmo assim, Neuza quis se casar. Com as economias dela e dele, construíram uma boa casa, a mobiliaram de jeito, tudo parecia ir às mil maravilhas. Mas a euforia inicial passou logo e só então ela viu o que era violência doméstica. Primeiro, vieram os xingamentos, as humilhações, as ameaças. Mas isso não era nada comparado com o que viria depois. Na primeira vez que apanhou, procurou uma orientação jurídica, o que só agravou a situação. Como sempre, Neuza acabava, de novo, nos braços do marido. Pelo menos, diz, passou a só transar com ele de camisinha. O que acabava deixando o outro super-revoltado, revidando com mais agressões, o que acontece até hoje.
“Meu marido é tão agressor que, para me humilhar, me chama de Maria da Penha...”
Nestes momentos, Neuza não se envergonha de usar a filha como escudo. Como pai, ele é cem por cento, garante. Melhor assim. Pelo sim, pelo não, o cara respeita a menina e, nestes momentos críticos, quem não agiria da mesma maneira?
Aconselhada por muitos, a secretária começou a fazer denúncias e mais denúncias, mas acabava não levando o processo adiante. Resultado: ele até sossegava durante algum tempo, porém em dois ou três meses, tudo voltava ao que era antes. Entre uma briga e outra, fica uma mágoa enorme, mas ela vai levando. Em alguns momentos, Neuza chega a perdoar tudo, achando que o marido mudou. Que nada. Mais dia menos dia, ele volta a chegar em casa completamente bêbado e tudo é pretexto para briga.
A última vez foi num domingo à tarde. O sujeito chegou a pegar uma marreta para bater em Neuza. Sozinha em casa, sem a filha de dez anos para se apoiar, foi difícil se defender. Nesta hora, vizinhos e parentes silenciam, o que é lamentável.
“Dizem que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, mas não deveria ser assim. As pessoas têm obrigação de ver o que está acontecendo e até de chamar a polícia.”
Mais consciente de seus direitos, ela ligou para o 190 (PM), que apesar de já conhecê-la muito bem—afinal, Neuza já registrou dezenas de boletins de ocorrência na delegacia—não tinha nenhuma viatura disponível na hora. Uma hora e meia depois, quando os policiais chegaram, o homem já tinha saído de novo. Desta vez, Neuza resolveu não deixar barato. Na segunda-feira cedo, procurou o Centro de Referência da Mulher (Crem) em busca de orientação. Neste mesmo dia foi levada até a Delegacia da Mulher, onde conversou longamente com a delegada Grace Arruda.
No momento, Neuza aguarda o resultado da medida protetiva, que vai obrigar o agressor, entre outras coisas, a se afastar do lar. Mas seu sentimento é de fragilidade, insegurança, medo. É no Crem que Neuza vem encontrando forças para, quem sabe, sair do círculo vicioso em que se encontra.
“Por enquanto, não posso dizer que vou me separar, mas aqui eu vi que não sou a única a passar por isso. Conheci muitas mulheres como eu, que sofrem até mais violência que eu e que ainda não tiveram coragem de se libertar. Às vezes eu penso que não vou conseguir, mas o pessoal daqui tem me ajudado muito, nossa!”
Violência contra a mulher não diminuiu
A história de Neuza ilustra bem a situação de violência doméstica familiar na cidade. E que, infelizmente, não é nada boa. A coordenadora do Crem, Rosângela Cassano, assumiu o cargo há cinco meses, em decorrência de inúmeros acontecimentos éticos e administrativos que estavam até manchando a reputação do órgão. Além de ser a responsável pela assistência jurídica às mulheres vítimas de violência, ela vem implantando uma série de medidas para oferecer um melhor atendimento a estas pessoas sofridas que ali acorrem em busca de socorro.
Neste período, o Crem já alcançou muitos resultados positivos. Em curto espaço de tempo, pode-se dizer que Rosângela arrumou a casa. Já não era sem tempo. Quem conheceu o Crem antes e depois, pode avaliar o quanto seu trabalho tem sido efetivo. Para começo de conversa, o órgão, que funciona no prédio da antiga rodoviária, ao lado da Prefeitura, permanece aberto o dia inteiro, das 8h às 18h, tomou um banho de beleza e arrumação, foi todo reorganizado. Tudo para receber as mulheres que ali vão à procura de ajuda, com mais conforto e bem-estar.
Afinal, quem chega a ir até lá certamente está passando por um momento extremamente difícil. Aquele pode ser o primeiro passo para a libertação de uma vida de submissão, humilhações e violências de todo tipo.
“Todos que aqui trabalham—desde o pessoal de apoio administrativo e jurídico às acolhedoras, psicólogas e pedagogas—são comprometidos com a causa da mulher e atuam numa só direção, no sentido de defender seus direitos.”
O Crem atua em conjunto com a Delegacia da Mulher, a Polícia Militar, as Varas Criminais e de Família e a Promotoria de Justiça. Uma de suas maiores vitórias foi a diminuição de casos em que as mulheres acabam desistindo de lutar. O Departamento Jurídico ajudou mais de 30 vítimas a ingressar com ações contra seus agressores e foram firmados diversos acordos judiciais. O Crem também acompanhou cerca de 60 inquéritos e 80 audiências.
A situação da mulher friburguense é especialmente complicada, garante Rosângela. Apesar de a violência doméstica ser comum a todas as classes, não há dúvidas de que a dependência cultural e econômica agrava o problema. E é fato que as nossas mulheres são, em sua maioria, subordinadas a seus maridos e companheiros. Fora isso, ressalta Rosângela, não existe planejamento familiar, o número de filhos é grande, o que também contribui para levá-las a se submeter àqueles maus-tratos. E tem também a questão demográfica, com morros onde são construídos os puxadinhos e todo mundo mora junto, o que complica na hora de uma separação.
Enfim, separar não é fácil para ninguém. E quanto menor a cidade, mais difícil isso se torna. Muitas até chegam a dar os primeiros passos, como Neuza, mas não é raro que acabem desistindo no meio do caminho. Daí a função tão importante do Crem. Apoiá-las em todos os momentos para que, de uma forma ou de outra, consigam se livrar destas amarras.
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