Maurício Siaines
O grupo As Cantadeiras do Tresfolia se apresenta desde 2000 em diversos espaços de Niterói, Rio de Janeiro e Nova Friburgo, nesta última, especialmente em São Pedro da Serra e Lumiar. As cantadeiras chamam seu trabalho de “brincadeiras musicais”, que definem da seguinte maneira: “Experimentamos sonoridades e compartilhamos preocupações, descobertas, sentimentos e sonhos. Assim, vamos juntando nossos achados e perdidos e construindo nosso repertório — provisório como a vida”.
Marisa Alvarenga e Margarida Ferreira, membros do grupo, tiveram uma longa conversa com A VOZ DA SERRA, em uma final de tarde fria de Lumiar, em que contaram suas histórias e falaram de suas proposta de trabalho. Seguem abaixo, alguns momentos extraídos dessa conversa.
A VOZ DA SERRA – De onde vem esse nome do grupo?
Marisa – O grupo se chama Tresfolia e colocamos “cantadeiras” porque aí já vai algo conceitual — nós queremos estar mais na trilha das cantadeiras, que são ligadas ao grupo social, a essa função primeira da arte, mais do que ao espetáculo. Cantadeira é diferente de cantora, que é aquela da bela arte, feita mais para ser apreciada do que compartilhada.
Margarida – E tem aí uma referência na chamada cultura popular. Existiam as romanceiras, que cantavam os romances, que eram chamadas de cantadeiras. Li uma referência rápida a elas no Ariano Suassuna.
Marisa – E existem, também, as cantadeiras portuguesas, que são grupos de mulheres. É um pouco diferente do conceito do artista individual com seu virtuosismo. Este é algo como um produto que se olha e se aprecia, com que se envolve menos. Aprecia-se uma arte bela e virtuosa. Nós tentamos uma arte que interaja, em que queremos mais mexer do que ser apreciadas. Queremos que quem assista saia dali mexido, tal como mexemos em nós mesmas quando fazemos, mais do que apreciando uma beleza.
AVS – O trabalho de vocês tem alguma coisa de teatro, além da busca de determinados sons, além dos instrumentos que vocês usam, o violão, o teclado ...
Marisa – ... e um monte de coisas. Na hora em que estamos produzindo pode estar uma lata de biscoitos por perto e, se servir, ela entra. Para entender isto é preciso entender a formação do nosso grupo.
AVS – Vocês são Marisa Alvarenga e Margarida Ferreira ...
Margarida – ... e a terceira companheira é Lídia Nogueira, que não está aqui porque hoje é aniversário da mãe dela. Mesmo assim, estivemos conversando, as três, durante esta semana, para trazer também um pouco da Lídia. Não recados ...
Marisa – ... era uma parada para pensar no que a gente vem fazendo, já que nos preparávamos para uma entrevista.
AVS – Vocês já trabalharam em universidades, vocês são professoras?
Margarida – Fomos.
Marisa – A Lídia ainda trabalha. Eu e Margarida é que somos aposentadas.
Margarida – Trabalhei em psicologia.
AVS – Fez clínica, também?
Margarida – Não, trabalhei só na universidade.
Marisa – E eu sou pedagoga.
Margarida – E a Lídia é psicóloga.
AVS – Psicólogo tem algo de bruxo, não é? De quem entende das almas das pessoas ...Margarida – Eu acho ótima essa aproximação com as bruxarias. É a psicologia como reveladora, que lida com encantos ...
AVS – E na música isto também está presente, esse encantamento, não é?
Marisa – É, ou a arte mexe, ou é um produto bastante comercial, dentro do sistema capitalista, algo que se consome e depois continua-se sendo absolutamente a mesma pessoa, apenas encantada com aquele virtuosismo. Esse tipo de arte não nos interessa. Não se trata de procurar apenas um aprofundamento técnico, não é só dominar determinada linguagem. Tudo isso está dentro, mas se parar aí, fica devendo. Acordei pensando nisto: o que nós somos? Somos apenas aquele resultado do trabalho. Quando estamos juntas, em uma entrevista, por exemplo, somos essa entidade “nós”, mas somos cada uma. Quando mostramos o trabalho, ali somos misturadas. Ali no produto do nosso trabalho, em um show, ali não nos vemos mais com fronteiras. Mas só nesse produto final somos misturadas. Fora daí, somos embate, estamos em comunicação. Quando entramos no palco e fazemos, ali acontece a mistura, igual a um liquidificador.
AVS – Essa é a mágica.
Marisa – Essa é a mágica, nós somos três, que temos nossos embates e nossas discussões. Nossas leituras de nossos trabalhos têm alguma coisa igual e também coisas diferentes. Nossa formação é parecida porque tem um fundo acadêmico, não adianta correr, somos três pessoas da vida acadêmica e de uma vida acadêmica que não se encerrou com uma graduação. Vivemos em função da academia. Então, isto é muito presente, é uma coisa que marca. E são vidas acadêmicas e pensamentos diferentes. Então, por exemplo, minha formação dentro da música, eu estudei piano, quando era pequena.
Margarida – E só um parêntese, de como, com uma formação outra, fomos parar na música.
AVS – Pois é, a marca da vida acadêmica é a racionalidade. Seja em que área for, é preciso, na academia, fazer um discurso muito racional. E vocês fazem um trabalho em que a marca é a magia. Como é isso?Margarida – É preciso falar no tempo em que a gente se junta, porque há uma vivência muito próxima. Em nosso tempo de infância cabia às meninas estudar piano ou fazer balé. Então, a inclinação pela música nasce lá atrás.
Marisa – No meu caso, nasci em uma família em que pai e mãe, isto é, meu avô e minha avó, se casaram em um grupo teatral, que começou a história de teatro em Niterói. Em minha casa, essa coisa da música e do teatro era mais ou menos como almoçar e jantar. Só depois vim a saber que existiam vidas sem isso. Para mim, a vida era assim: minha mãe e minha madrinha tocando o tempo todo, meus tios tocando, era quase uma orquestra em casa. Minha mãe juntava as crianças da família e da vizinhança para fazer teatro. Minha tia, que foi pianista de cinema mudo, tocava para nós fazermos teatro. Quando entrei na universidade, em 1965, parei. Mais ou menos em 1963, comecei a parar para me preparar para a universidade. Quando entrei para a universidade, em 65, em pleno [regime do] golpe [militar], parei o piano porque não dava mais tempo. Aí, imediatamente me liguei ao povo da militância política. Porque minha mãe também gostava, era ligadona no Partido Comunista, gostava de ira para as passeatas na época do Getúlio Vargas. Enfim, eu acabo também entrando naquela militância. E aí, formou-se na UFF (Universidade Federal Fluminense) um grupo de teatro, que, a princípio, era como houve muitos no Brasil: já que não podemos falar, vamos falar através do teatro. Era um teatro político, de resistência, que teve, inclusive atividades clandestinas. O diretor foi preso, depois voltou, alguns sumiram e não voltaram. Alguns, depois, continuaram no teatro depois de ter passado a época do teatro como resistência política. E eu fiquei nesse grupo. Até pouco tempo atrás. Era um teatro experimental e de pesquisa. Interessava ousar na linguagem, experimentar linguagens novas.
Nos anos 1980, fui fazer um curso de musicoterapia, onde a música ultrapassava seus limites, onde se experimentavam diversas sonoridades e instrumentos. Aí, voltei ao piano, comecei também a tocar violão. Depois, fui parar no Museu do Ingá, fazendo uma oficina de voz e participando de uma oficina de violão. E aí, encontrei Margarida. A Ana Cláudia Lorena, que foi a primeira terceira cantadeira também foi fazer oficina de violão.
Margarida – Em minha época de criança, tinha essa história em que, dependendo da disponibilidade financeira que a família tivesse, fazia-se música e balé. Na música era especialmente o piano. As famílias tinham um sonho de realizar alguma coisa naquele encaminhamento dos filhos. Aí aprendi piano durante algum tempo, mas quando estava no ginásio, ou no normal, a música parou, mas, conversando aqui, tenho a memória de que nunca me desliguei da música. Mas em determinado momento em que o estudo ficou mais sério, o piano ficou em segundo plano. Mas a sensação que eu tenho é de que a música nunca se descolou. Até uma cena, que está colada em mim, de uma situação na casa de meus padrinhos, que tinham uma vitrola que tocava música erudita e eu ficava brincando para lá e para cá. Coisa que tocamos hoje ... Às vezes a Marisa pergunta: “Você conhece essa música?”. E eu conheço e não sei de onde. Parece que nosso corpos ficam realmente impregnados de coisas de que não nos damos conta.
AVS – E como entrou a psicologia nesse caminho?
Margarida – Fiz o ginásio e o normal. Nessa época, tinha um namorado, era noiva e ia me casar. E isso não deu certo, desandou o namoro e, claro, hoje eu festejo muito isso. E aí minha vida deu uma volta radical. Saí de casa, resolvi fazer psicologia, fui morar no Rio, participei daquele momento em que havia uma militância misturada com uma coisa muito hippie. Entrei na faculdade [de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ] já com 23 anos e ali tive uma experiência radical de vida, de tudo. Imagine um menina comportada, em cuja vida estava dando tudo certinho, e de repente ... uma coisa de muita radicalidade na mudança.
AVS – Quem não viveu essa época não tem ideia, é difícil falar, não é?
Margarida – Eu acho que sim. Estabeleci um corte total com tudo o que tinha vivido até então e fui para o Rio. Fui fazer psicologia, um campo em que se mexiam com aquelas questões que perturbavam. Fui morar em comunidade. Havia a militância e a turma hippie, que buscava experiências que acabavam se ligando à questão da própria psicologia. E a música esta aí. Trabalhava na UFF, na parte administrativa e depois ia para o Rio — o que também era um corte muito doido.
Marisa – Nessa época [em 1970], meu marido — que na época era meu namorado — foi preso e foi torturado, saindo bastante quebrado da prisão. Quando me perguntam se tudo isso foi muito difícil, costumo dizer que não sei falar disso. Porque não tenho nem a memória de tudo isso ter sido difícil. Tenho dificuldade porque as pessoas têm uma expectativa de sofrimento. Não tenho a lembrança disso como um grande sofrimento. Como é difícil contar como se viviam essas coisas! Não era a mole: a pessoa é presa, some, volta toda quebrada, depois, você tem que sair fugindo. Tudo isso não tem o caráter desesperador que às vezes as pessoas esperam que você diga. Por isso é difícil falar disso.
AVS – E que espaço teve em sua vida o ofício de pedagoga?
Marisa – Fui pedagoga o tempo todo. Inclusive, me aposentei na UFRJ como técnica em assuntos educacionais, trabalhava na coordenação de ensino. E também fui professora a vida inteira. E inclusive, As Cantadeiras começam a existir por causa de um encontro da Faculdade de Educação. Onde eu era reconhecida como professora e não pela música.
AVS – E quando foi esse encontro da Faculdade de Educação?
Marisa – Foi em 2000. Estávamos fazendo as oficinas no Museu do Ingá. Depois, resolvemos continuar tocando juntas em minha casa. Estávamos brincando com o violão, quando recebi um telefonema em que uma professora da Faculdade de Educação da UFF falou de um encontro nacional de alfabetizadores de adultos e a coordenadora desse encontro queria fazer uma apresentação musical, um momento de arte e tinha pouco dinheiro. E me propôs que eu fizesse uma apresentação. Mas eu não estava mais com vontade de ir sozinha, como já tinha feito outras vezes. E aí, olhei para elas e propus: porque não vamos nós? E aí precisávamos de um nome e surgiu este, As Cantadeiras, que junta canto com brincadeira.
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