Maurício Siaines
Nascida em Lumiar nos anos 1920, Denair Klein só voltou para lá, porém, no ano de 2003, depois de percorrer diversos caminhos pela vida afora. Não sabe exatamente o ano em que nasceu, mas é a mais velha de três irmãs, a mais moça delas de 1930. Seu registro civil fala no ano de 1924, mas ela tem dúvidas quanto a isto. Há uma anotação diferente—a que ela nunca teve acesso—feita por sua mãe em uma Bíblia que lia na época.
Seja como for, sua vida é marcada por muitas décadas de mudanças desde que a lavoura de café começou a decair no estado do Rio no início do século XX. Lumiar conheceria a partir daí e por algum tempo um êxodo de parte de sua população. Nos anos 50, muitas famílias se dirigiram ao Paraná, onde começava a se expandir a cafeicultura.
Uma das marcas da vida de Denair foram as histórias contadas pela mãe a respeito de Lumiar. Nelas aparecem dois personagens cuja existência real é difícil verificar, João Janot e André Avelino, capazes de praticar curas, algumas cercadas por uma atmosfera de mistério, como a aplicada à avó de Denair, Maria Robrigues Knup, depois de uma picada de cobra enquanto colhia café.
As irmãs de Denair, Noemi e Odemi, foram cantoras de rádio no Rio de Janeiro dos anos 50. Parte dessas histórias ela contou em entrevista para A VOZ DA SERRA, em sua casa em Lumiar, na segunda-feira, 22 de agosto, depois de muitas outras conversas trocadas pelas ruas da localidade. É a vida de uma pessoa comum no meio de diversas transformações por que o país passou. Não deixa de ser uma saga.
A VOZ DA SERRA – Sua família deixou Lumiar ainda nos anos 1920, pois sua irmã Odemi, a mais nova, nasceu em Cardoso Moreira em 1930, e, antes dela, sua outra irmã, Noemi, não foi?
Denair Klein – É, elas já nasceram lá.
AVS – E a senhora se lembra dessa viagem da família de Lumiar para Cardoso Moreira?
Denair – Lembro da viagem e lembro da casa em que nasci. Só não lembro o nome do lugar. Uns dizem que era na Toca da Onça, outros dizem quer era em Ribeirão das voltas [localidades dentro do distrito de Lumiar]. Já andei investigando, mas não deu certo. Lembro direitinho da casa em que nasci ... tenho a impressão de que se for no lugar, vou saber... mas já dever ter mudado. Lembro da viagem. Meu avô já tinha morrido e minha avó resolveu vender as coisas aqui e comprar uma fazendola lá em Cardoso Moreira.
Meu tio Pedro arrumou a tropa e eu, minha prima e meu primo fomos em um burro ou cavalo. Meu tio colocou dois cestos na cangalha do animal e eu e minha prima fomos cada uma em um cesto. Meu primo foi montado. Íamos com chapéus de minha avó muito bonitos, que ela usava em festas que frequentava.
AVS – A senhora tem ideia de quanto tempo levou essa viagem?
Denair – Não demorou muito, não.
AVS – Mas levou mais de um dia.
Denair – É, paramos pelo caminho.
AVS – Uma vez a senhora me contou uma história de que sua avó levou uma picada de cobra colhendo café. Ela colhia café normalmente?
Denair – Colhia. Ela era portuguesa. Não precisava trabalhar, mas gostava de trabalhar. Ela não parava, era um azougue. Era o jeito dela.
AVS – A senhora lembra dela, não é?
Denair – Lembro bem dela. Eu aprontava mas ele nunca conseguiu me bater nem me dar beliscões, porque eu corria e trepava em uma figueira e esperava meu pai chegar. Quando ele vinha lá longe, eu descia e ia encontrar com ele e ele não deixava ninguém me bater. Mas levei uma corrida de um boi ... eu adorava uma vaca e por causa dela eu não como carne de boi de jeito nenhum. Muita gente pensa que eu tenho religião tipo indiana ... eu gosto dos indianos mas eu não como carne porque gostava da minha vaca.
AVS – O caminho seguido por sua família nessa viagem era por onde hoje passa a estrada Serramar?
Denair – Não sei ... só de vez em quando se via uma casa. Era muito pequena.
AVS – E lá em Cardoso Moreira?
Denair – Lá nasceram minhas irmãs. Depois, fomos para Bom Jesus de Itabapoana (RJ), depois para Mimoso do Sul (ES). Nesses lugares todos eu tenho histórias porque vivi muitas coisas, festas juninas muito bonitas. Já devia ter uns 10 anos.
AVS – E já desenhava?
Denair – Já ... desenhava no chão, porque não tinha nem caderno. Quando chovia, eu ia para o lugar em que se colocava o café para secar e desenhava com um palito. Ali se espalhava o café para secar e depois se puxava para ensacar e vender. Meu pai dizia que eu tinha mão muito fina e fez um pequeno rodo para eu também puxar café.
AVS – E a senhora desenhava naquele lugar de secar o café ...
Denair – É. Uma vez me levaram a um casamento e eu nunca tinha visto uma noiva com aquele véu. Fiquei encantada com aquilo e aí, quando cheguei em casa, desenhei a noiva no chão. E estava se armando um temporal e minha mãe ficou com pena e pegou uma bacia grande, colocou em cima do desenho e apertou bem para a chuva não desmanchar. Depois, chamava os vizinhos para ver os desenhos que eu fazia.
AVS – Lembra-se de quando pôde começar a desenhar com lápis e papel?
Denair – Lembro. Meu pai, um dia, já em Mimoso do Sul, foi à cidade e comprou uma caixa de lápis de cor e um caderno. Aí, eu me espalhei, desenhei e pintei. Devia ter uns 10 ou 11 anos.
AVS – Quando a senhora desenhou aquele retrato da cantora Claudia Muzio (1889-1936), tinha em torno de 13 anos.
Denair – Aquele eu já desenhei em Cachoeiro de Itapemirim ... tinha 14, no máximo 15 anos.
AVS – Existe algum acontecimento importante de que a senhora de lembre? A guerra, por exemplo?
Denair – Da guerra? Lembro.
AVS – O que a senhora lembra bem dessa época.
Denair – Da guerra do Hitler? Lembro, foi brabo. Lembro, sim. Já morava em Cachoeiro do Itapemirim e já tinha uns 17 ou 18 anos. Eu tinha um espírito de me meter nas coisas, olhar. Lembro-me dos integralistas e dos comunistas. Um era verde e outro era vermelho. Lembro das passeatas ... a coisa andou braba lá também. Quando eles se encontravam ... Lembro daquelas brigas.
Pensando agora me lembro da igreja de São Benedito em Bom Jesus de Itabapoana ... lembro de um temporal tremendo que houve lá ... ficamos em uma casa que tinha sido de comércio, com um balcão grande. Nesse meio tempo, meu pai saiu para procurar um canto no Espírito Santo
AVS – Por que motivo sua família foi se deslocando desde Lumiar até Cachoeiro de Itapemirim? Ia em busca da lavoura de café?
Denair – Não tenho uma explicação certa, mas acredito que ele não estivesse satisfeito ali junto com minha avó e meus tios. Fomos para Bom Jesus de Itabapoana mas de lá ele estava sempre procurando um canto para ficar ... ficava sempre como meeiro.
AVS – Mas meeiro em que tipo de plantação?
Denair – Era café naquela época. Era o que mandava na época. Plantava também outras coisas ... havia aqueles fazendeiros, alguns contratavam e nós ficávamos. Em Cachoeiro de Itapemirim parou, ele entrou na prefeitura como lixeiro, mas como ele tinha conhecimentos de construção de casas e de estradas, ele foi promovido à função de fazer estradas, orientando e fiscalizando os empregados. Foi nessa época que ele morreu ... foi uma onda de pneumonia que matou muita gente. Eu já tinha uns 21 anos, mais ou menos.
AVS – Depois disso, sua família se mudou para a Rua do Lavradio, no Rio de Janeiro?
Denair – Eu trabalhei muito passando roupa em casas de famílias ricas. Depois aprendi a costurar. Minha mãe foi antes para o Rio, eu estava aprendendo costura. As duas grandes costureiras da época eram a mãe do Roberto Carlos, dona Laura, que passou a ser Lady Laura, e a minha mestra, que era dona Alzira Rocha. Esta era tia de uma Miss Espírito Santo. Aprendi alta costura.
Nessa época, minha irmã Noemi, a do meio, cantava igual à Dalva de Oliveira e chamava a atenção.
Mas, antes disso eu já havia estado no Rio, antes de minha mãe e de minhas irmãs.
AVS – Quando foi isto?
Denair – Fui para o Rio, trabalhei no Laboratório Magel, no [bairro carioca do] Rio Comprido, perto da Fábrica Confiança, de tecidos. Getúlio já governava e criou o salário mínimo, eu recebi o primeiro salário mínimo [criado em 1º de maio de 1940]. Nessa época, diziam que eu parecia muito com a Vivian Leigh, atriz famosa que fez [o filme] E o vento levou. Um dia, penteei o cabelo igual ao da Vivian Leigh e fui ao cinema Vitória assistir ao filme e provoquei sensação. Soube mais tarde que meu pai pegava a foto da Vivian Leigh e dizia que era igual a mim.
Quando fiz um ano de trabalho nesse laboratório, morando na casa desses amigos do Espírito Santo, tive férias e fui para Cachoeiro do Itapemirim. Meu pai morreu nessa época e não voltei para o Rio. Mais tarde é que minha mãe resolveu ir para lá. Minhas irmãs já cantavam. Nessa época, o Erivelto [Martins] brigou com a mulher, a Dalva de Oliveira, e soube da minha irmã [Noemi], que já morava com minha mãe na Rua do Lavradio [no centro do Rio]. E aí, ele foi lá em casa e levou a minha irmã para substituir a Dalva [no conjunto Trio de Ouro]. Nessa época eu estava lá em Cachoeiro do Itapemirim, costurando junto com minha mestra, dona Alzira Rocha.
Depois disso, conheci meu marido. Casei no Rio e fui morar na Praça Onze.
AVS – Era o lugar do samba e do Carnaval, não é?
Denair – Meu filho nasceu quase que no Carnaval. Lembro de estar na sacada, coma a barriga grande, olhando o Carnaval.
AVS – Depois disso, a vida seguiu, a senhora enfrentou problemas de saúde de seu marido e, em determinado momento, resolveu estudar pintura, como foi isto?
Denair – O primeiro curso que fiz foi em Niterói, mas morava no Rio Comprido. Minha irmã Odemi morava lá em Niterói. Eu estive doente, com depressão, e me levaram para a casa de minha irmã. Nessa época, meu filho já estava até casado. Fui levada a um médico e ele percebeu que eu gostava de quadros e pintava e recomendou que eu pintasse. Foi aí que fui para o Sesc [fazer um curso de pintura]. Depois fui para a Sociedade de Belas Artes, na Rua do Lavradio. Depois é que fui para o Calouste [Centro de Artes Calouste Gulbenkian].
AVS – A vida de cada pessoa conta uma porção de histórias ...
Denair – Eu sempre digo que minha vida é o caldeirão da bruxa ... é uma misturada.
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