Maurício Siaines
Hélio Guedes de Brito, engenheiro químico, e Beatriz Costa Lima, médica, ambos com 34 anos, realizam desde 2007 uma experiência desejada por muitas pessoas: a de viver no exterior. Andaram pelo Québec—o Canadá de língua francesa—e pelo Qatar, no Oriente Médio. Com hábitos muito cariocas e ligados a elementos culturais brasileiros—conheceram-se, por exemplo, em aulas de capoeira—viveram os últimos anos no multicultural Canadá e no Qatar, país islâmico e aberto para a economia do ocidente, em processo de transformação em polo industrial.
Neste último resolveram ter um filho, Francisco, nascido em 2010. Deixaram, então, de ser um casal que anda pelo mundo e transformaram-se em uma família, com preocupações com a educação de Francisco, que agora frequenta uma creche em que as professoras, merendeiras e outras profissionais são filipinas, sírias e de outras nacionalidades e falam inglês com as crianças e suas famílias. Hélio conversou com A VOZ DA SERRA, na sexta-feira, 10 de novembro, véspera de embarcarem para o Qatar, viagem que esperam ser a última, uma vez que pretendem voltar para o Brasil. Na entrevista, ele relatou experiências que tiveram na condição de brasileiros vivendo no exterior.
A VOZ DA SERRA – Como foi essa decisão de viver fora do Brasil?
Hélio Guedes – Estava trabalhando na Vale Sul, como engenheiro químico, e tinha um amigo que tinha ido para o Canadá e lá estavam precisando de engenheiros com experiência em processo. E me fizeram o convite para ir para lá. Sentamos, conversamos, vimos os prós e os contras. Seria um desafio, tanto para mim, quanto para a Beatriz: aprender outra língua [o francês], passar por novas experiências ... e tomamos a decisão de ir para lá.
AVS – E você já tinha quanto tempo de experiência profissional?
Hélio – Quando saí da faculdade, fiz três anos de mestrado. Depois, estava há dois anos trabalhando na empresa como engenheiro químico. Saí, então, daqui, com cinco anos de formado. Tinha também feito uma pós-graduação, depois do mestrado, em engenharia econômica. Isto servia para pegar o lado da engenharia que não se aborda na faculdade, mais ligado ao dinheiro, aos investimentos, fazer cálculos de riscos, essas coisas.
AVS – Tanto você, quanto a Beatriz levavam a vida com uma certa rotina, morando nos mesmo bairro em que nasceram e cresceram. De repente, vão para o Canadá francês e depois para o Oriente Médio. Como foi essa passagem? Essa perspectiva é sedutora para muita gente.
Hélio – Foi o tempo só de conseguirmos os vistos. Fui antes, com tempo para chegar, me estabelecer, alugar um apartamento, comprar o mínimo necessário. Antes disso, morei um mês em um sofá na casa de um amigo.
AVS – Geralmente, as pessoas jovens quando pensam em ir para o exterior, têm a expectativa de ganhar dinheiro. Isto é real?
Hélio – Isto não é verdade. No Canadá existe uma política de imigração. Então, vê-se muitos jovens brasileiros chegarem lá com a cara e a coragem, sem ter onde morar, sem ter o que fazer, só com o dinheiro levado. Para mim, esta opção não é válida, nunca a considerei. Essas pessoas vivem de alguma maneira, alugam quarto em pensão e ficam no subemprego durante muito tempo, até conseguirem se estabelecer. Tinha engenheiros e pessoas com outras formações trabalhando lá em postos de gasolina. Apenas por quererem morar fora. Conheci um cara lá, se não me engano do México, trabalhando em uma pequena padaria onde havia uma daquelas máquinas de assar frango. Ele era médico e trabalhava lá destrinchando frango.
AVS – E a remuneração dele?
Hélio – Era baixa.
AVS – E compensava? Ele ganharia mais em seu país?
Hélio – Não sei se compensava. Acho que era mais uma aventura. E com os brasileiros, tinha a impressão que queriam apenas sair do país. Era como uma negação do Brasil. E nunca conseguimos fazer amizade com brasileiros por esse motivo porque não tínhamos saído para negar nossas origens, mas por uma oportunidade que surgiu. Nós sentíamos muito isso entre os brasileiros, especialmente entre o pessoal do Sul e de Minas Gerais. Falavam do Brasil com ódio e, às vezes, até evitavam falar português.
AVS – A experiência de vocês, se tinha algo de aventura, era também um risco calculado, não é?
Hélio – É, eu já tinha um emprego com uma remuneração compatível com o mercado lá, a Beatriz foi fazer um curso de francês e depois foi trabalhar em uma pesquisa na universidade. Foi uma aventura pelo fato de ser a primeira vez em que nos jogávamos no mundo, mas tínhamos toda uma estrutura. Apesar e ter morado um mês em um sofá, isto foi só enquanto me ambientava. Saía, trabalhava e voltava para o sofá.
AVS – Você fala dessas pessoas que ficavam com raiva do Brasil. E vocês, por acaso, redescobriram o Brasil vivendo no exterior?
Hélio – É, e foi uma redescoberta muito interessante. A primeira redescoberta é sensorial. Você sente falta dos cheiros, do pão, das flores à noite. E aí seus sentidos começam a remetê-lo à sua casa, à sua infância. E aí, começam as saudades de casa. Acho que a redescoberta se dá muito pela crítica. Brasileiro, em geral, tem o sentimento de que tudo lá fora é muito bom e funciona perfeitamente, enquanto aqui tudo é muito ruim. E você chega e vê que todo mundo é humano, tem os mesmos problemas e outros diferentes. Redescobrimos o Brasil dessa maneira, pensando no que temos de bom no que poderíamos incorporar. Acho que essa é a redescoberta, não é um deslumbramento, é uma comparação crítica. Você compara sociedades diferentes e passa a entender melhor a sociedade brasileira.
AVS – E essa comparação se dá dentro da pessoa não é? Você é o laboratório, é isso?
Hélio – É, você é o laboratório. Você vê as coisas acontecendo e percebe essas diferenças sem se dar conta do que está sentindo. Aí, no final de um tempo, tem-se uma figura completamente diferente do seu país e do país em que você está também. No Canadá eu vi mendigos, pobreza, pessoas com depressão caídas nas ruas, coisas ruins como as que temos. E tem coisas boas, como os meios de transporte que funcionam perfeitamente bem, não existe um monte de empresas de ônibus, é só o Estado que provê a sociedade desse serviço. Você vê as escolas funcionando, os centros médicos funcionando ...
AVS – Também são estatais?
Hélio – Também. No Canadá é muito difícil juntar dinheiro porque o imposto é muito alto. Quase metade do meu salário ia para impostos, para cobrir o que é o país em educação, saúde.
AVS – Vocês estavam lá no Canadá, um dos maiores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo. E surge essa possibilidade de irem para o Oriente Médio. Como foi isso?
Hélio – Não estávamos conseguindo juntar dinheiro e este era um de nossos objetivos. E no Qatar nós conseguiríamos juntar mais em menos tempo. E havia também coisas não mensuráveis, como a experiência de vida em um país oriental. E existem muitos preconceitos contra esses povos. Mesmo nós tínhamos medo de ir para o Oriente Médio.
AVS – E o trabalho nesses países, como foi essa experiência?
Hélio – Trabalho com processos, independentemente de serem processos químicos. Havendo uma entrada e uma saída, o meu trabalho acontece naquela caixa que se chama o processo para otimizar a saída. Estava trabalhando, desde o Brasil, na indústria de alumínio. No Canadá, fui trabalhar no setor de projetos de uma indústria de alumínio. Eles precisavam de quem tivesse trabalhado com aqueles processos no dia a dia para trazer os conhecimentos para a parte de projetos e ajudar os engenheiros na elaboração dos designs das plantas que eles estavam fazendo. Eles estavam fazendo várias plantas pelo mundo, uma delas era no Qatar. E comecei a participar desse projeto.
Fui para o Canadá fazer projetos. Antes usava macacão, capacete, óculos de proteção, protetor de ouvido e passei a usar terno e gravata em um escritório, era um trabalho burocrático, ler especificações, rever cálculos. E chegou uma etapa do trabalho em que precisavam de gente lá no Qatar, para tirar do papel e colocar em prática. E perguntaram se eu queria ir. Eles pegaram engenheiros da Venezuela, da China, da Índia, da África do Sul. Onde havia engenheiros que conhecessem um pouco de alumínio eles estavam tentando recrutar.
AVS - Agora uma coisa: nem o Canadá, nem o Qatar têm minério de alumínio, não é? Por que não fazemos a mesma coisa aqui?
Hélio – O Brasil tinha até mais empresas de alumínio. Os principais insumos do alumínio são a alumina, que vem da bauxita [o minério de alumínio] e a energia elétrica e esta tem ficado cada vez mais cara no Brasil, o que leva as empresas a não terem lucro suficiente para se manterem aqui.
AVS – E no Canadá e no Qatar a energia elétrica é mais barata?
Hélio – No Canadá ela é mais barata e há muitos subsídios do governo para manter essas empresas funcionando, porque mantêm empregos e o status global do Canadá como um dos maiores produtores de alumínio.
AVS – Isto seria possível aqui, não é?
Hélio – Sim, porque a maior mina de bauxita do mundo está aqui no Brasil e hoje em dia está na mão de noruegueses.
AVS – Outra coisa: vocês saíram do Brasil em busca de oportunidades de trabalho na sua profissão. No Canadá, vocês interagiam com as pessoas de lá, andavam nas ruas etc. E no Qatar? Não é um país árabe comum, não é?
Hélio – Lá não existe essa possibilidade, é completamente diferente. A rua, no Qatar, é simplesmente um passa-carro, não existem pedestres. Ninguém sai à rua para fazer qualquer coisa, as pessoas pegam seus carros, estacionam em um lugar próximo, fazem o que tiverem que fazer, depois pegam o carro e vão embora. O lugar em que se anda é a orla [do Golfo Pérsico], mas para chegar lá é preciso ir de carro. E no verão é quase impossível ter um dia agradável ao ar livre. À noite, às vezes, você vê famílias nos parques, fazendo piquenique, mas durante o dia é impossível. Os brasileiros que estão lá não saíram por renegar o país, saíram por motivos profissionais. Todos que estão lá são contratados por alguma empresa. Muitos, jogando futebol, trabalhando como treinadores.
AVS – Como foi a transferência para o Qatar?
Hélio – Não sabíamos o que encontraríamos lá. Mas o que a mídia fala é completamente diferente da realidade. É um lugar como qualquer outro, onde as pessoas vivem, têm desejos. E têm uma religião diferente. Mas é um lugar como qualquer outro, as pessoas são solícitas, cumprimentam você na rua, querem ir ao shopping comprar o iPad delas como aqui no Brasil, ou no Canadá. É uma sociedade como outra qualquer, só que regida pelas leis islâmicas. Se você não quebrar essas leis, está seguro. O Qatar é um país muito pequeno, com cerca de três milhões de habitantes. Destes, 70% são estrangeiros, segundo a Embaixada do Brasil. Décadas atrás, os qatari descobriram estar sentados em um imenso barril de gás. E, a partir disto, resolveram desenvolver a indústria. E diferentemente dos Emirados Árabes Unidos, eles estão tentando diversificar a base econômica. Não estão focando só no gás, ou no petróleo ou no turismo, como fez Dubai. Têm indústrias de fertilizantes, de aço, agora, de alumínio, têm montadoras de carros. Estão tentando formar uma base muito mais sólida do que a de qualquer outro país do Oriente Médio.
AVS – E você se enriqueceu na lida com outros povos?
Hélio – Enriqueceu, mas não tecnicamente. Você não fica tecnicamente melhor por ter saído e voltado. As culturas com que tive contato, muitos europeus, norte-americanos, indianos: o Brasil não está atrás de ninguém tecnicamente. Você não vai para fora para aprender muito mais coisas. É claro que sempre aprende, como aprenderia trabalhando aqui. O maior ganho é poder trabalhar com diferentes culturas, diferentes formas de trabalho. Um norueguês trabalhando é completamente diferente de um indiano, de um canadense. E o brasileiro é um povo muito agressivo no trabalho. A gente parte para a briga. Se tem alguma coisa errada, você vai reclamar e querer resolver, botar todo mundo em uma reunião para sair com diretrizes. O norueguês chega com sua sandália meia hora antes, toma um café, lê o jornal. Chega o horário ele vai começar a trabalhar, fazer o que tem que fazer, acabou o horário, ele vai para casa. Por causa do sistema norueguês em que o governo é uma grande mãe ou um grande pai para eles, têm muito na cabeça o que precisam fazer, fazem com competência, mas não extrapolam seus limites. Nós [brasileiros] não somos assim. Chegamos um pouquinho mais cedo, saímos um pouquinho mais tarde. Aqui é um ambiente muito mais competitivo ... é uma questão de sobrevivência.
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