Uma história localizada e cultivada

quinta-feira, 10 de maio de 2012
por Maurício Siaines
Uma história localizada e cultivada
Uma história localizada e cultivada

A Vila Mozer é um lugar em Lumiar, 5º distrito de Nova Friburgo (RJ), com algumas características que a tornam especial para observação e compreensão da lógica de relacionamento social da região. Um sítio com 17 boas residências, é muito mais do que um simples condomínio de casas. Tem por marca a tradição admirada ou alimentada por todos os seus moradores, amigos e frequentadores, que envolve os mínimos detalhes da vida.

Um exemplo dessa tradição está nas festas promovidas no local, a festa julina e o carnaval: todos trabalham e participam da organização dos eventos, cada um sabendo seu papel, sem que haja necessidade de planejamento prévio. Bercília Mozzer de Morais, filha do fundador do lugar, Astrogildo Mozer (1919-1994), descrevendo a organização das festas, diz que “quando chega na época da festa [em julho] não é preciso dizer ‘fulano, você vai fazer isso, beltrano, você vai fazer aquilo’. É alguma coisa dada por Deus, não sei, mas todo mundo já sabe qual o seu compromisso.” Essa festa, sempre no último sábado do mês de julho, é uma atração turística. O mesmo se pode dizer do carnaval, quando o desfile do Bloco Flor do Luar enche a localidade de gente.

“Eu, por exemplo,” continua Bercília, “sou encarregada de fazer a broa, minha irmã é da cozinha, minha cunhada é também da cozinha, a outra cunhada é [encarregada] de enfeitar, as sobrinhas ficam na contabilidade e arrumando as barracas. É tão engraçado: os homens já sabem que têm que fazer as barracas, botar as bebidas no freezer, procurar carne para fazer churrasco. Ninguém precisa mandar em ninguém.”

Já estão presentes nas cabeças das pessoas seus papéis, de acordo com uma organização que parece não ter sido feita por ninguém em particular, mas que se repete a cada ano. A festa julina é fonte de renda para o carnaval – quando o bloco Flor do Luar sai da Vila Mozer e desfila em Lumiar e em São Pedro da Serra – e todos participam da tarefa de registrar as receitas e despesas, em documentos que ficam guardados com Bercília. A primeira festa foi em 27 de julho de 1991. Bercília faz questão de dizer que guarda os documentos e diversas outras pessoas a ajudam a controlar os recursos. “Todo mundo administra junto”. O dinheiro é depositado em uma conta conjunta de três pessoas. “Só se pega esse dinheiro para investir no carnaval”. Cada família tem que dar 20 prendas para as barraquinhas, quatro qualidades diferentes de doces para a barraca de doces. Parece uma empresa organizada meticulosamente e, o que chama a atenção, com base na tradição cultural e não em um planejamento elaborado por alguma instância de chefia ou gerência.

Ação comum e devoção

Outra característica da Vila Mozer são os almoços de todos os fins de semana em um espaço coletivo, independente das moradias das famílias nucleares compostas por marido, mulher e filhos. Ali há uma cozinha industrial, com toda a infraestrutura de um restaurante, e diversas mesas e cadeiras. No último domingo, 5 de maio, o número de pessoas era relativamente pequeno porque muitos tinham viajado em uma excursão ao Santuário Nacional Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte (SP).

A excursão não é acidental, a religião católica é muito presente naquela vida social e o padre Jeferson, torcedor do Flamengo, está quase sempre presente nas refeições coletivas e festas. No último domingo acompanhou o grupo da excursão. Mas, mesmo com o desfalque daqueles que viajaram, o almoço do último domingo foi fértil em informações sobre a vida e a história da Vila Mozer.

A origem

Essa relação entre trabalho, vida comunitária e religião foi definida pelo fundador Astrogildo Mozer. Junto dele, sua esposa, Dorcelinda Schuab Mozer (1921-1994), conhecida como Linda. Dizia ele aos 11 filhos e a outras pessoas que frequentavam sua casa: em primeiro lugar está a obrigação, depois a devoção e, finalmente, a diversão. Astrogildo nasceu na localidade de Retiro Saudoso, hoje conhecida Alto da Boavista, em Boa Esperança, distrito de Lumiar. Mudou-se, ainda criança, para Macabu, no município de Trajano de Moraes, em função da forte atração da agricultura local. São hoje mais de 80 pessoas, entre filhos, netos e bisnetos de Astrogildo, sempre presentes na Vila Mozer.

Saindo de Lumiar e seguindo pela estrada de Boa Esperança, chega-se a Macabu. Até pouco tempo atrás, era preciso um carro resistente, pois, além de Boa Esperança, a estrada era acidentada, antiga trilha de burros adaptada. Essas localidades fazem parte de uma mesma região, com uma mesma realidade econômica e cultural. O agricultor Elcy Ramos, de muita atuação na região de Macabu, conta que “antigamente, as batatas e o inhame eram vendidos para Minas Gerais, agora, vêm de lá para cá”, depois de informar que naquela época, nos anos 1960-70, a região produzia 12 toneladas de batatas por semana. Hoje, quase toda a área está transformada em pasto, com produção agrícola muito menor que antes, em razão das novas técnicas utilizadas em outras regiões, que permitiram a queda de preços dos produtos.

Antecipando-se às mudanças de padrões na economia, Astrogildo mudou-se com a família para Lumiar, em 1954, onde comprou as terras da atual Vila Mozer. Além das oportunidades econômicas, atraía-o em Lumiar a presença da educadora Maria Damasco Mouta, primeira professora diplomada na localidade, figura importante cuja atuação tem repercussões até a atualidade, como a constituição da Ação Rural de São Sebastião de Lumiar e a edificação que lhe pertence, onde funcionou um pré-seminário organizado por ela junto com o primeiro bispo de Nova Friburgo, entre 1960 e 1994, dom Clemente Isnard (1917- 2011). Mais uma vez, a religião, associada à formação, volta a estar aqui presente.

Bercília Mozzer guarda uma certidão de óbito de Victorio Mozer (1843-1919), bisavô de Astrogildo, descendente de Jean Josep Mozer, imigrante suíço chegado ao Brasil em dezembro de 1919 entre aqueles 1458 que se dirigiriam à fazenda do Morro Queimado, na serra fluminense, para terras a eles doadas por decreto do rei dom João VI, de 16 de maio de 1818.

Astrogildo, um empreendedor

Os filhos de Astrogildo falam hoje da rígida divisão de trabalho na família e sempre lembram que, entre essas atribuições de funções, o estudo estava preservado, assim como a participação na banda da Euterpe Lumiarense. O lugar em que a família vivia – a atual Vila Mozer – era autossuficiente em alimentos, como resultado dessa distribuição de responsabilidades.

Como se tivesse a visão da crise do mundo agrícola da região, Astrogildo foi aos poucos direcionando os esforços produtivos da família para outra a atividade, o transporte de passageiros. Antes disso, ainda em Macabu, já tinha essa inclinação para a diversificação de atividades: além de produtor agrícola atuava no transporte e comercialização de mercadorias com tropa de burros. No início dos anos 1960, tinha uma empresa de ônibus a circular entre Lumiar e o centro de Nova Friburgo, a 35 quilômetros. Da mesma maneira, vários parentes trabalhavam nos ônibus, inclusive o próprio Astrogildo, que atuava como cobrador, função que dividia com uma de suas filhas.

Para poder comprar os ônibus e constituir a empresa, Astrogildo deu como garantia de empréstimo ao Banco do Brasil o sítio onde está a Vila Mozer, as terras de Macabu, todos os seus bens. “Minha mãe chorava muito por causa daquilo”, diz Bercília, lembrando o medo de o negócio vir a não dar certo. Em 1972, vendeu o negócio e os ônibus para a Faol (Friburgo Auto Ônibus Ltda), e esta, como parte do pagamento, lhe deu o direito de viajar de graça nos ônibus pelo resto da vida, além de empregar todos os membros da família que trabalhavam na empresa. Estanislau de Morais, conhecido como Lau, genro de Astrogildo, trabalhou na Faol até se aposentar. Sobre essa época ele conta que os dois ônibus saíam, um de Friburgo e outro de Lumiar e se cruzavam na estrada. Havia um ponto em que um esperava o outro, dada a estreiteza do caminho na maior parte do percurso. Em torno de 1968-69, conta Lau, ia-se de Lumiar a Mury sem encontrar qualquer outro carro.

A formação dos filhos era preocupação permanente de Astrogildo, tendo sido a possibilidade de frequentarem a escola de Maria Mouta um dos motivos de sua mudança para Lumiar. Mas a compreensão de Astrogildo do processo de formação não era apenas funcional e evidência disto é que os punha para aprender música e tocar na banda da Sociedade Musical Euterpe Lumiarense.

“Em 1963, quando eu tinha 13 anos, meu pai me botou para aprender música aqui em Lumiar [na Euterpe Lumiarense], conta Protásio Mozer, filho de Astrogildo, que assistiu praticamente a todas as mudanças vividas por Lumiar. Ele tocou trompete na banda durante mais de 7 anos e, embora a vida o tenha levado por outros caminhos – hoje, trabalha e passa a maior parte do tempo no Rio de Janeiro –, ainda toca “alguma coisinha” e orgulha-se ao dizer que seu trompete, o mesmo de quando tocava na banda, “tem 48 anos”. Ele entende que a tradição de união entre os irmãos foi reforçada pela medida de Astrogildo de dividir em vida e demarcar as terras do sítio, distribuindo-as entre os 11 filhos, que construíram suas casas.

Protásio ainda conta histórias sobre o dia a dia de sua adolescência: “a gente tratava dos bichos todos – vaca, burro –, estudava, jantava”, isto em torno das 18h30, e “lá pelas sete da noite tinha que estar lá na banda para aprender; cansados, mas ficávamos até dez da noite”. Dos filhos, tocavam na banda Protásio, João e Juscelino, além do empregado Sílvio Magalhães, já falecido. Sem qualquer iluminação nos caminhos e estradas de Lumiar, a volta para casa, tarde da noite, em um percurso de cerca de 1km, acontecia no meio da escuridão e esta, às vezes, sugeria a presença de assombrações, lobisomens e sacis-pererês.

O cultivo da tradição

Estar presente no ambiente que antecede o almoço coletivo da Vila Mozer é uma grande experiência para quem se interessa pela vida social e pela história. Muitas histórias são contadas e lembranças são cotejadas pelas pessoas unidas por laços de parentesco que determinam modos de relacionamento entre elas. Além disso, a tradição é sempre evocada. Gente da geração de netos de Astrogildo e Linda está presente, interessada em levantar dados da história da família. Dois desses jovens têm músicas compostas e, a uma dado momento do encontro de domingo, surge um violão e duas dessas músicas são cantadas, falando de Astrogildo e Linda e valorizando a vida da família.

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TAGS: Banda Euterpe Lumiarense
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