Maurício Siaines
Antonio Lo Bianco, mais do que um cidadão, pode ser entendido como um personagem da cidade de Nova Friburgo em todo seu drama histórico. Recebeu A VOZ DA SERRA, em sua residência, no centro da cidade, na tarde da última quinta-feira, 17 de maio, e fez reflexões sobre tudo o que já viveu e sobre o que deseja para a cidade. Abaixo, trechos dessa entrevista.
A VOZ DA SERRA – Sua vida tem se desenvolvido em Nova Friburgo e se misturado com inúmeros aspectos da vida local. Fale um pouco de suas experiências e memórias. Quando o senhor chegou a Nova Friburgo?
Antonio Lo Bianco – Sou italiano e cheguei a Friburgo em 1930, com 14 anos.
AVS – Quer dizer, o senhor chegou com uma idade em que a pessoa já tem consciência do que está vivendo.
Lo Bianco – A palavra “emigrar” não era para existir no mundo. É uma página negra a emigração. Ainda mais quando se emigra por necessidade.
AVS – Essa é uma vivência muito forte em sua memória?
Lo Bianco – É. Quando cheguei Friburgo tinha 14 mil habitantes. Era um vilarejo. Já era uma cidade, mas um lugar pequeno com muitos estrangeiros. Tinha uma colônia alemã de número elevado, talvez uns três ou quatro mil alemães. Devia ter também uns três mil italianos. Os libaneses também [eram numerosos], os portugueses. Os primeiros imigrantes foram os suíços, mas eles chegaram aqui despedaçados, estraçalhados e pouco ou nada fizeram. Friburgo deve muito mesmo é à colônia alemã. Os alemães industrializaram esta cidade.
AVS – O senhor acompanhou esse processo, não é?
Lo Bianco – Esse crescimento de Friburgo, é claro, acompanhei.
AVS – E o senhor trabalhava em quê, inicialmente?
Lo Bianco – Quando cheguei a Friburgo, fui trabalhar na Mina de Ouro, que era um misto de papelaria, banca de jornais e revistas, loja de bilhetes de loteria etc. Trabalhei pouco tempo lá, uns dois ou três anos.
AVS – E onde ficava essa loja?
Lo Bianco – Era bem no centro da cidade, na esquina da Rua Farinha Filho. Era um casebre naquele tempo. Depois, montamos um bar, como se fosse hoje uma delicatessen. Naquele tempo não tinha nada [desse tipo] em Friburgo. Como tínhamos facilidade, mandávamos vir presuntos, mortadelas, bacalhau, da Itália. Aos poucos [o negócio] foi se transformando em confeitaria e, depois, em restaurante.
AVS – E como se chamava esse estabelecimento?
Lo Bianco – Chamava-se Bar Universal. Quando instalamos o restaurante, começamos a fazer um talharim, com ovos de verdade. Na proporção em que ia crescendo vimos que não dava mais para fazer o talharim manualmente, resolvemos montar uma fábrica de macarrão aqui em Friburgo. E assim foi indo, crescendo. Fazíamos em alta escala, vendíamos para o comércio, era o Talharim Friburgo.
AVS – Somente no comércio local?
Lo Bianco – Não, vendíamos também para fora. Houve até quem quisesse comprar o direito de fornecimento exclusivo. Era uma empresa a quem fornecíamos, no Rio, mas achamos por bem não vender esse direito, pois ficaríamos presos a só uma firma. E a cada vez fazíamos mais e [o negócio] foi expandindo. Passamos a fabricar biscoitos amanteigados mais tarde, quando vieram meus irmãos da Europa, depois da guerra..., um deles já havia trabalhado em fábrica de macarrão, na Itália. Tínhamos também um primo na Praça Onze, no Rio, que tinha fábrica de macarrão. Estávamos todos mais ou menos dentro do mesmo setor. Aí, com a expansão do negócio, os irmãos que vieram da Itália ficaram na fábrica e nós montamos uma loja de móveis e eletrodomésticos, a Galeria de Móveis Universal. Sempre com o nome Universal. Esta Galeria Universal foi fechada há uns sete anos, talvez.
AVS – Retomando aquilo que o senhor falou, que “a emigração é uma página negra”...
Lo Bianco – Ninguém emigra sem motivo, sempre há um motivo. Meu motivo foi a necessidade de trabalhar.
AVS – E nessa época, 1930, o senhor e sua família não viam perspectiva de trabalho na Itália? Qual lugar da Itália?
Lo Bianco – Sou da Calábria, no tornozelo da bota [formada pelo mapa da Itália]. O interessante disso tudo é que, quando a pessoa emigra é porque tem desejo de mudar alguma coisa, pensa diferente. Eu tinha 14 anos e sabia que meu pai era antifascista, tinha um grupo de amigos com um ideal diferente. Ele trabalhava na estrada de ferro, era empregado do Estado, do governo. E lá era obrigatório tirar a carteira de fascista, do partido do [Benito] Mussolini. Como meu pai e mais umas dez pessoas se recusaram a tirar a carteira, perderam o emprego. Ou se aceitava a ordem do regime, ou se perdia o emprego. E como eu tinha um tio [já estabelecido no Brasil] que havia ido lá para visitar a família, voltei com ele. Meus pais ficaram na Itália.
AVS – Eles viveram a guerra na Itália?
Lo Bianco – Eu já estava com outro irmão aqui em Friburgo, o Pascoal, chegado em 1924. Quando mandamos chamar o resto da família, e chegaram a Nápoles—tinha ainda lá dois irmãos, uma irmã e minha mãe, meu pai já havia falecido—a polícia federal impediu que seguissem a viagem porque meus irmãos estavam na idade de fazer o serviço militar. Nessa época já se preparava a guerra, houve a invasão da Áustria pela Alemanha [em 1938], então eles foram impedidos. E minha mãe veio com minha irmã. Os dois ficaram lá, esperando vir para o Brasil depois do serviço militar. Mas aí começou a guerra, e eles tiveram que ficar. Um lutou na Grécia, o outro esteve na África. Acabada a guerra, embora com muito sofrimento, vieram para cá. Um deles ainda é vivo, o outro faleceu em Friburgo. Essa guerra foi dolorosa, uma tragédia para todo mundo. A Alemanha foi esmagada, a Inglaterra foi bombardeada. A França foi ocupada rapidamente e não chegou a haver uma carnificina. E meus irmãos vieram e começaram a trabalhar aqui. Quando eles chegaram já tínhamos o bar e restaurante. Depois, montamos a fábrica. Um de meus irmãos já tinha trabalhado em uma pequena fábrica de macarrão na Itália. Tínhamos também os primos da Praça Onze, no Rio, que produziam massas. E aqui, tivemos a oportunidade de crescer produzindo massas.
AVS – E então...
Lo Bianco – Friburgo foi crescendo, melhorando, as fábricas dos alemães cresciam de uma maneira interessante. Cada fábrica tinha dois, três, quatro mil operários. Metade de Friburgo trabalhava nas fábricas. Aos poucos chegaram outras colônias. E assim Friburgo foi se tornando uma das cidades mais importantes da Região Serrana. Agora, infelizmente, aconteceu essa coisa tão triste que sofremos: a cidade foi estraçalhada pela natureza, como se tivesse sido bombardeada... um dilúvio caiu em Friburgo e acabou com a beleza de nossa cidade. Friburgo havia se tornado uma cidade bonita. No meu tempo, vinham os veranistas. Mas estes não eram do tipo que vinham em um sábado e iam embora no domingo à tarde, ficavam dois, três meses. Havia o trem da [Estrada de Ferro] Leopoldina... naquela época não tinha ônibus. E Friburgo crescia de uma maneira agigantada. Havia muitas plantações de cravos e, então, todos os passageiros do trem compravam cravos. Aliás, Friburgo era conhecida como a cidade dos cravos. Antes havia sido conhecida como cidade dos tuberculosos. Inclusive, meus parentes do Rio não queriam que eu viesse para Friburgo por causa da tuberculose. Eles vinham para se curar por causa do clima, um dos mais saudáveis do estado do Rio. E havia o Sanatório Naval: os marinheiros que ficavam doentes vinham aqui em busca de saúde. Alguns se curavam. E muitos ficaram vivendo em Friburgo, se casaram e formaram família aqui. Muitos marinheiros, inclusive eram amigos meus.
AVS – E Friburgo foi crescendo até que veio a crise econômica do final dos anos 1980, início dos anos 1990, então ...
Lo Bianco – A crise econômica é passageira. O Brasil vem crescendo e, hoje, é um dos países mais importantes do mundo. Enquanto vemos hoje a Europa em situações graves, na Grécia, na Espanha, parece que na Itália também, Portugal também está em situação difícil. A situação econômica está criando certa dificuldade por causa da falta de trabalho, com milhões de pessoas desempregadas em toda parte do mundo. Na Europa, particularmente. E o Brasil está crescendo, graças a Deus.
AVS – Mas, no final do século XX, muitas fábricas fecharam em Friburgo.
Lo Bianco – Foi o seguinte: se tivesse sido dada importância a essas fábricas em Friburgo, se tivesse havido ajuda, em vez de se dar dinheiro a banqueiros, se nossas fábricas tivessem tido ajuda, hoje Friburgo forneceria a moda íntima ao mundo, o Brasil seria a segunda China. Foi uma pena para Friburgo porque, como disse anteriormente, metade de Friburgo trabalhava nas fábricas. Constatávamos isto quando fazíamos fichas para vender a crédito em nossa loja. O comércio também sempre foi bom, a cidade evoluía, o número de veranistas era grande. O clima sempre foi uma joia em Friburgo, temos uma praça bonita... eu, que conheço muitos lugares, nunca vi uma praça assim, tão bela e tão grande, a ponto de nosso poeta J. G. de Araújo Jorge denominá-la “catedral dos eucaliptos”. Nosso inverno é saudável, ensolarado, faz um frio gostoso e não aquele de dez, vinte graus abaixo de zero, que mata as pessoas.
AVS – Quando veio a crise econômica, muitas mulheres começaram a produzir em casa, nascendo assim a moda íntima...
Lo Bianco – Isto foi importante, porque, na proporção em que as fábricas iam encolhendo e mandando cada vez mais empregados embora... as fábricas se tornaram insustentáveis e muitas pessoas que trabalhavam nas fábricas se organizaram e começaram a trabalhar por conta própria. E, graças a Deus, na maior parte, estão sendo bem sucedidas e demonstrando capacidade.
AVS – Aqui sempre houve uma cultura do trabalho, não é?
Lo Bianco – Sempre. E sempre foi uma cidade tranquila. Os alemães, no tempo em que eram donos do mercado, da indústria, tinham conhecimento do trabalho e sabiam como conduzir as coisas. Isso foi uma escola, além de produzir o crescimento da cidade, o povo também foi se educando dentro da escola alemã. Os alemães eram responsáveis, inteligentes, honestos em seus negócios. E o povo friburguense foi se adaptando a essa escola. Agora, houve essa desgraça, a natureza acabou com nossa cidade. Houve muitas promessas, mas nada aconteceu, estamos abandonados. A cidade está perdendo até a esperança, porque o povo está sofrendo as consequências, sem uma solução à vista. Friburgo está passando momentos dolorosos, a cidade está machucada. Tão abandonada, a ponto de permitir que uma tradicionalíssima instituição de ensino, como a Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, que durante décadas formou tantos mestres, sendo um verdadeiro centro de livre pensamento, esteja fechando as portas. Como isso é possível? Será que ninguém percebe a gravidade de uma perda como essa, em todos os seus níveis? Vai ficar por isso mesmo, fecha e pronto?
AVS – E que expectativa o senhor tem, diante disto?
Lo Bianco – Gostaria que se promovesse aqui um grito. Um grito da cidade inteira. Deveríamos paralisar a cidade, não digo por dias, mas por umas duas ou três horas. Parar a cidade: escolas, indústria, comércio e fazer sentir que precisamos dar uma solução para a cidade, de forma geral. Precisamos encontrar uma saída viável, concreta, realista. Vamos exigir dos governos, em todas as esferas, municipal, estadual e federal, uma atitude. Que se cumpra o que foi prometido, que se honre os discursos feitos. A população está à míngua, sem perspectivas, desesperançada. É preciso dar um basta nesta pasmaceira.
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