Quando digitalizamos um acervo de documentos, inevitavelmente, deitamos os olhos em todos os itens do arquivo, manuscritos, impressos, livros, etc. Nada escapará da nossa atenção no decorrer das rotinas de trabalho. Mais ainda, concluída a digitalização, a metodologia conduz o nosso trabalho para a captura do conteúdo. Nesse caso, notadamente, nos aprofundamos e vamos muito além do simples conhecimento da imagem produzida. Tal qual um imenso telescópio a varrer o céu, deitamos os olhos em cada título, em cada parágrafo, numa singela nota esquecida num canto qualquer de uma página, ou apenas e simplesmente numa única palavra. E, de forma constante e inevitável, as descobertas vão se sucedendo e se acumulando, o arquivo se agiganta, se multiplica várias vezes, desdobrando-se em inúmeros outros conjuntos, transformando-se num outro arquivo, maior e mais completo, mais visível, com melhor identidade e infindáveis possibilidades de pesquisa. Tem sido assim, o Arquivo Pró-Memória mudou para melhor, ganhou personalidade. E por ter ficado tão importante acaba chamando para si a atenção de outros, e as doações vão seguindo, somando-se, espalhando-se pelas prateleiras, enchendo as estantes e os armários. Com elas novas descobertas, algumas enriquecedoras outras nem tanto, mas ainda que de menor importância, quando reunidas ao “todo”, se complementam e terminam por ganhar a atenção devida.
A título de exemplo de nossa explanação, eis o que encontramos no decorrer de nosso trabalho:
“Quando a chuva cae sobre qualquer parte deste mundo pouco sério, tudo reverdece, desde as plantas, exceto as dos pés, até a alegria amortecida dos homens. A chuva é benéfica, fecunda savanas e cochilhas, varre o calor, faz tanta cousa! Se insiste em alagar-nos, trazendo-nos à physionòmia um ar carrancudo de spleen, é um berreiro louco por ahi a fora, a pedir ao céo que feche as torneiras e faça parar a líquida avalanche. O céo attende, e manda a secca, mortal, árida, medonha.
“Pois é isto que acontece com um jornal. Chove a collaboração, e os redatores exultam. Tiras e laudas juncam, abarrotam as mezas de trabalho. Nada melhor! Eis, porém, excessiva essa fúria d’escrivinhar, e os pobres dos jornalistas torcem a tromba, como quem diz: “Hum! Isso não está a me cheirar bem...
“E os artigos chovem tempestuosamente, inundando, alagando a rédacção, como costuma fazer aquelle inoffensivo Bengalas, primo irmão do Nilo. E sabem o que acontece? ...”
Apenas um breve trecho de uma crônica, com o título de “Conversa Fiada”, escrita por um rapazola de apenas 17 anos, mas cuja veia literária já é possível notar. Tempos mais tarde, aos 28 anos, publicaria, ele, a sua primeira obra poética—“Alguma Poesia”. Foi ele o primeiro poeta brasileiro a se afirmar após as estreias modernistas, com sua liberdade linguística e verso livre. Seu nome? Carlos Drummond de Andrade.
Não podemos, até o momento, afirmar o ineditismo do texto acima. Podemos deixar registrado, entretanto, se tratar de uma das muitas crônicas e notas publicadas no Jornal Aurora Collegial, caderno literário e noticioso, de responsabilidade dos alunos—ditos “maiores”—do Colégio Anchieta, no período que vai de 1905 até 1922. Outras mais como: “X é um rapaz”, de 31/8/1919, “A Primavera”, de 18/9/1919, ou ainda “Calor, exames e o nariz de Cleópatra”, de 30/9/1919. Onze crônicas no total. Um achado de grande valor, imaginamos! Acervo este cujos originais se encontram muito bem guardados e preservados no colégio, após terem sido higienizados, restaurados, digitalizados e acondicionados, de forma que possam resistir ainda mais. Estão todos aqui, em nosso acervo, graças ao trabalho de preservação da Fundação D. João VI de Nova Friburgo.
Lembramos, agora, de outro trecho de jornal, do semanário, “O Correio Popular”, publicado em 1905—dessa vez não me recordo o autor—, que chama a atenção pelo seu conteúdo, em cujo título se lê: “O Desafio das Bandas”. Depois de um certo ocorrido, de um disse me disse, diz lá, num certo trecho:
“Os leitores me desculpem se isso lhes está caceteando. Não sei escrever; não tenho competência para metter-me numa dança tão figurada como esta. Mas não posso deixar o meo amigo Coronel João Moraes receber os borrifos com que pretendem marear a gloria de sua ‘Penna de Ouro’.
“Imaginem que depois de cem annos, quando nós todos formos defuntos, lembre-se um maluco qualquer, desses que andam a investigar papeis velhos para escrever a historia... Esse esmerilhador de arquivos irá fatalmente ler as collecções dos jornaes. Por estes terá notícia de um famoso desafio occorrido em Friburgo, em tantos de tal mez, de um anno muito remoto, e blá blá blá...”
Bem, como dissemos, não sei o nome do autor e sequer os motivos do tal desafio, nada disso importa. Sei apenas, que nesse pequeno trecho, esse tal sujeito profetizou, acertadamente. Imaginem! Digitalizamos apenas a metade do acervo do Pró-Memória! Resta, ainda, uma segunda metade!
Haja “malucos” e “esmerilhadores de arquivos” para tanto!
Nelson A. Bohrer (Guguti)
Deixe o seu comentário