“Ele perguntou: ‘Amor, posso dar um beijo nessa magrela?’. Ela permitiu. E participou também. A partir disso, nos deixamos mesmo viver aquela coisa nova e nos apegamos muito rápido. Rolou até um pouco de receio no começo — compreensível, né? Me conheciam há tão pouco tempo e já estávamos tão juntos...”
G.M. está prestes a fazer 28 anos, é tatuadora, atriz, artista circense, e se falarmos muito mais do que isso, não conseguiremos preservar seu anonimato, pois antes de ir embora ela tratou de ficar bem conhecida por aqui. Friburguense, de família tradicional e tudo o mais, mesmo vivendo na segurança dessas ruas conhecidas, entre amigos de infância e tantos outros ganhados durante a vida, entre família e parceiros de trabalhos e projetos, conforme prega o dito popular, G.M. picou a mula; escafedeu-se; meteu o pé. Sentindo que o mercado de trabalho friburguense já havia lhe dado tanto quanto fosse possível até ali, ela se mudou para o Rio, na cara e na coragem, dividindo apartamento com uma amiga. E foi através dessa amiga que, um dia, num bar, ela conheceu o casal A., 34 anos, e J., de 31, com quem ela mesma viria a se casar, mais tarde.
Sim, G.M. vive num “trisal”: um relacionamento amoroso que envolve três pessoas. A. e J. eram casados há três anos, de papel passado na Candelária, quando G.M. entrou na relação. Sobre o relacionamento dos três, por mais peculiar que possa parecer, não é assim tão incomum — pelo menos, não para os moldes comportamentais das grandes cidades. Isso porque o conceito de poliamor, ou seja, a possibilidade de se ter relacionamentos simultâneos, com mais de uma pessoa, é uma prática comum, embora ainda em processo de aceitação (ou ao menos entendimento) por uma parcela significativa da população ocidental; ou mesmo reprovada por outras.
A primeira união poliafetiva oficial em cartório do Brasil foi feita em 2012. Para especialistas e estudiosos do assunto, são cada vez mais comuns relações nesse formato. De acordo com o antropólogo Antonio Cerdeira Pilão, mestre no tema pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o formato mais comum é o mesmo que vivem G.M, A. e J. – de um homem com duas mulheres. Regina Navarro Lins, psicanalista e autora de “O Livro do Amor”, diz que em até 30 anos muito mais pessoas viverão sob esta óptica. Grupos brasileiros sobre poliamor passam dos 10 mil integrantes no Facebook.
O princípio da relação poliamorosa (ou poliafetiva) é a oposição à monogamia — quando a pessoa tem apenas um parceiro(a). É antigo o mito de que a monogamia é o “padrão” na natureza, mas cada vez mais estudos indicam que os animais têm diversos parceiros sexuais. Mesmo as aves, reconhecidas pela fidelidade.
“Moramos juntos, dormimos juntos, fazemos compras juntos, cuidamos da casa, dos 17 gatos e quatro cachorros juntos. A. e eu até trabalhamos juntos. Não tem nada diferente de um casamento comum. Só uma pessoa a mais”
De acordo com os poliamoristas, o amor livre é mais parecido com o que se prega no budismo; um sentimento amigo. Sem exclusividade, sem posse, podendo dar-se vazão ao plano da busca pela individualidade. Assim, há toda uma corrente segundo a qual se acredita que o amor idealizado e romântico, e, principalmente, monogâmico, perderá cada vez mais força. Dando lugar às múltiplas relações. Sobre isso, o Caderno Light publica o artigo do antropólogo Wecisley Ribeiro a respeito das relações poliamorosas e a construção social do amor romântico.
As mil faces de Eros
(Ou a insuficiência ontológica das classificações amorosas)
Wecisley Ribeiro
A antropologia, ciência do humano, se constituiu a partir de duas operações cognitivas fundamentais. De um lado, quando observa aspectos socioculturais distintos das tradições ocidentais a partir das quais se constituiu, ela tenta familiarizar-se com práticas e significados que lhes são estranhos; de outro, ao olhar para o mundo ocidental (eurocêntrico), precisa o contrário, estranhar o familiar. Em pouco mais de um século, estas duas formas inversas e complementares de olhar para as tradições culturais nos ofereceram ferramentas analíticas valiosas para pensar o estatuto cultural do amor — como de resto, de categorias classificatórias que com ele se relacionam num mesmo campo semântico como gênero, sexo, corpo, identidade.
A própria tradição cristã antiga, que cedo se disseminou amplamente pela civilização ocidental, já conhecia sistemas matrimoniais muito distintos da noção moderna de amor monogâmico heteronormativo — tal como a poligamia sororal na qual, por razões genealógicas, o homem se casa com a irmã mais nova de sua esposa falecida. E, no entanto, para além da poligamia, é a descoberta de sociedades com hábitos sexuais ainda mais contrastantes um dos primeiros fenômenos que concorreram para desestabilizar os imperativos morais ligados ao sexo em nossa própria tradição. Este foi o caso da poliandria, na qual é a mulher que se relaciona com vários homens. Também fomos confrontados com povos que reconhecem amplamente a legitimidade das relações homoafetivas (naturalmente, sem empregar esta categoria forjada pelo movimento LGBT, em sua luta pelo direito à liberdade dos afetos); e mesmo com outros que lhe conferem estatuto de superioridade. Inicialmente tratados, pelo senso comum hegemônico, como evidências da “inferioridade” daqueles povos, tais sistemas de aliança sexual tiveram suas virtudes, complexidades e coerências internas demonstradas pelo estudo antropológico.
Mas, como filha (in)disciplinada da tradição ocidental, a antropologia viu ela mesma — e reiteradas vezes — suas categorias de pensamento demolidas pelos modos de pensar alhures. Sua história também se constituiu com base nas oposições binárias que sedimentam, por exemplo, as classificações de gênero. Natureza e cultura, indivíduo e sociedade, feminino e masculino, emoção e razão constituem alguns pares que se opõem em nossos sistemas culturais. Mas nem todas as sociedades (sequer a maioria delas) pensam a partir dos mesmos termos dualistas. Para mencionar apenas dois exemplos geograficamente distantes entre si, nem os Arawété do Xingu, estudados pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, nem alguns povos da Melanésia, observados pela britânica Marilyn Strathern, organizam suas teorias do mundo a partir de oposições binárias. Nos dois casos, as identidades, os corpos, os gêneros e as próprias pessoas são concebidos de forma múltipla, relacional e, ao mesmo tempo, partida (algo alheio à noção ocidental de indivíduo). Os corpos, no contexto destas duas teorias sobre o universo, não são estáveis, mas construídos pelas relações sociais. Um novo vínculo dota a pessoa de nova pele. A identidade ou o gênero podem também se alterar de modo radical conforme as pessoas com quem se estabelece as relações e conforme a natureza destas relações. Mesmo as diferenças corporais entre espécies animais são dinâmicas porque concebidas como meras roupas sob as quais se encontra uma mesma humanidade compartilhada por todos os entes.
Longe de indagar se os melanésios ou os índios amazônicos praticam formas múltiplas de sexualidade, o que interessa é argumentar como a concepção moderna e intrinsecamente burguesa do amor romântico, monogâmico e heterosexual depende da invenção da ideia de indivíduo. E, mais que isso, da noção de propriedade individual. O indivíduo é aquele que não se parte e, por conseguinte, sua propriedade é aquela que não se divide. Sob uma estética idealizada, que reduz a “felicidade eterna” à posse individual de outrem, o romantismo edificou um cárcere afetivo e sexual. O qual, por vezes, termina por subtrair toda a libido das vidas que se resignam ao ideal monogâmico heteronormativo. Mas, para além da redução empobrecedora da sexualidade humana, o que o ideal burguês perpetrou foi um achatamento de toda a potência libidinal da vida ao enquadrá-la nos esquemas fixos de identidade e de gênero.
O psicanalista Christian Dunker, em seu livro seminal de 2015, “Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros”, nos oferece uma conclusão explosiva sobre as causas profundas do mal-estar contemporâneo. A partir de um diálogo com o jogo de perspectivas mutáveis dos Arawété, sugere que sofremos frequentemente por um excesso de “experiências improdutivas de determinação”. Os imperativos morais e identitários segundo os quais importa ser “homem” ou “mulher”, “esposo” ou “esposa”, “profissional bem-sucedido” ou (para empregar a figura ideológica recentemente evocada para legitimar um golpe de estado) “bela, recatada e do lar”; estes imperativos não servem senão para domesticar nossa vontade de potência ontologicamente selvagem e subversiva. Contra essas clausuras, diz Dunker, precisamos de “experiências produtivas de indeterminação”. Em outras palavras, precisamos demolir as identidades e os gêneros. Eros, o deus grego do amor e do erotismo, tem mil faces. Nossas classificações amorosas cerceadoras são insuficientes para apreendê-las. O amor é, por definição, múltiplo e generoso e, para ampliar a formulação de Raul, “quem gosta de maçã irá gostar de todas, porque todas são”, a um só tempo, iguais e diferentes.
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