Ana Borges
Maurício Siaines é jornalista, mestre em sociologia e professor na Universidade Candido Mendes. Carioca, mudou-se para Nova Friburgo em 2004 e, desde 2006, mora em Lumiar. Para esta entrevista, Maurício mergulhou nos primórdios do descobrimento do Brasil e dos povos indígenas, na escravidão e colonização portuguesa, na vinda dos imigrantes de diversas partes do mundo, com suas crenças, para falar da formação religiosa do povo brasileiro. Nesta edição, o leitor encontrará a preciosa e reveladora análise do jornalista e sociólogo sobre o tema. Vale a pena "assistir a esta aula”. Confira.
Light - No Brasil temos um caldeirão de religiões, seitas e crenças, resultante da mistura dos povos que fundaram esta nação. O aparente respeito mútuo entre tantas diferenças se deve à nossa incensada natureza "pacífica” ou porque, no fundo, acreditamos um pouco em cada uma delas? O que você acha disso?
Maurício Siaines - Caetano Veloso, em Milagres do Povo, referindo-se ao povo negro que veio para o Brasil diz: "Foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”. Acho que aí estão duas coisas importantes. Em primeiro lugar, sempre houve a crueldade, como elemento das relações entre os diferentes agrupamentos sociais que formaram o Brasil. Em segundo lugar, esse povo sofredor também enfrentou o opressor como pôde. O Quilombo dos Palmares, no século 17, é o exemplo mais gritante. Quero dizer que não somos tão pacíficos assim. As religiões contêm em si visões de mundo. As religiões oriundas da África durante os 300 e tantos anos de escravidão eram proibidas e assim ficaram até meados do século 20. Então, o povo que se identificava com aquela visão de mundo passou a representar suas divindades nos santos católicos. Daí a mistura, que já era uma experiência secular portuguesa, em que entraram romanos, visigodos, árabes, judeus. Portugal já trazia em sua formação uma enorme mistura, que no Brasil continuou, com novos personagens, principalmente os negros e os índios. A existência das religiões afro-brasileiras é um exemplo de resistência, de visões de mundo que se recusam a morrer, apesar de toda a violência da escravidão e das consequentes perseguições.
As igrejas evangélicas vêm conquistando mais e mais fieis, ultimamente, e estão bem consolidadas no Brasil. Como chegaram ao Brasil?
Realmente, de um tempo para cá, temos o fenômeno do crescimento das religiões evangélicas. Afinal, a vida social é dinâmica. As religiões evangélicas são um viés do protestantismo, nascido na Alemanha, no século 16, que logo se expandiu para quase todo o norte da Europa. Aqui em Nova Friburgo, temos os luteranos, introduzidos no Brasil pelos alemães que vieram para cá no início do século 19.
Qual a importância do protestantismo num país sul-americano?
O pensador norte-americano Charles Peirce (1839-1914) diz que temos dois estados interiores possíveis, a crença e a dúvida, e só a crença leva à ação. Um problema é que as crenças religiosas costumam levar a aberrações, como vemos ultimamente com os fundamentalismos. Tratando das ações propiciadas pela fé, vale a pena pensar na profunda transformação trazida ao mundo pela Reforma Protestante, do século 16. Martinho Lutero (1483-1546) traduziu a Bíblia do latim, idioma exclusivo dos religiosos e sábios, para o alemão, língua viva, falada pelo seu povo. Criou a nova prática de ler a Bíblia, a procura de Deus. Um resultado concreto é que as pessoas aprenderam a ler e se habituaram a fazê-lo. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) costumava dizer que Lutero provocou o primeiro grande movimento de alfabetização de massas. Neste caso, mover montanhas significou adotar um novo hábito que iria mudar o mundo, facilitando novos saberes e o desenvolvimento de novas tecnologias.
Por que o homem precisa tanto acreditar num ser superior e poderoso ao qual deve obedecer cegamente, como certos grupos que interpretam o Alcorão de maneira equivocada, achando que vai para o paraíso depois de se explodir em um prédio ou no meio da rua?
São assustadores esses extremos da fé – partam do islamismo ou do cristianismo. Esse recurso ao além, ou a forças desconhecidas, parece-me que sempre existiu, seja qual for o grau de racionalidade da pessoa. Seja a crença no santo, ou a sucessão de ações a serem praticadas em um ritual, ou as duas coisas juntas, de alguma maneira, o maior crente da ciência se amolda a esse tipo de coisa.
Por quê?
Difícil dizer. Fala-se muito hoje em virtualidade. Penso que dependemos sempre de elementos virtuais, como a língua, por exemplo. A língua é o sistema operacional que a sociedade instala em cada indivíduo durante os dois primeiros anos de vida e sem ela, não é possível qualquer espécie de saber. Dependemos totalmente desse mundo virtual. E crenças e religiões fazem parte do mundo virtual, não são objetos concretos, mas podem vir a criar tais coisas concretas. Virtual porque significa algo que pode vir a ser.
Como você define a fé?
Voltando a Caetano Veloso, na mesma música: "Quem é ateu e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar, nem cansam de esperar. E o coração que é soberano e que é senhor não cabe na escravidão, não cabe no seu não (...)”. Entendo fé como uma emoção que faz parte de uma identificação. No caso abordado por Caetano, a fé está presente nessa identificação, é uma grande emoção. E, na etimologia da palavra, emoção está a ideia de movimento. É alguma coisa interior que leva à ação. Os católicos definem a fé como uma das virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade. A palavra fé é quase sinônima de crença, ter fé é o mesmo que acreditar. Mas, costumamos dar à palavra fé uma conotação também de entrega, de entrega a Deus ou a uma força espiritual. Diz-se que "a fé remove montanhas”. Pode ser, mas, com certeza, as pessoas agem por acreditar em algo.
Será que a razão e a fé, algum dia, poderão encontrar um ponto de conciliação, de complementação entre si?
Platão, no século 5 a.C. já propunha esse ponto de conciliação. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) também apresentava a questão da relação entre razão e fé. Quem sou eu para contestar saberes tão antigos. Sou também fruto desses saberes. Não posso me arvorar em produtor de uma resposta a esse tipo de questão. Penso que sempre vivemos nesse equilíbrio, ou desequilíbrio, entre essas duas coisas, que entendo como a razão e a emoção. A psicanálise é discurso científico e tenta entender o inconsciente humano, mas os psicanalistas não tentam inventar uma verdade como dois e dois são quatro. As ciências humanas e sociais têm se ocupado dessas questões. A antropologia e a sociologia entre elas. Mas também não são conclusivas e definitivas, como a psicanálise também não é. Nem poderiam ser porque, voltando a Charles Peirce, a reflexão que gera a ciência parte da dúvida e não da crença.
Penso que sempre vivemos nesse equilíbrio, ou desequilíbrio, entre essas duas coisas, que entendo como a razão e a emoção”
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