Maurício Siaines (*)
No caderno Light de A VOZ DA SERRA, deste sábado, 31 de outubro, Wanderson Nogueira fala de sua paixão vascaína. Começa dizendo o seguinte: “Eu não sei se o Vasco me escolheu ou se eu escolhi o Vasco, o fato é que sou vascaíno antes mesmo de conhecer a história do gigante da colina, pois se assim fosse escolheria o Vasco e pelo Vasco me deixaria ser escolhido”. Mais adiante ele diz o seguinte: “É impossível abandonar o Vasco. Deixar o Vasco de lado é como se tornar deficiente, mas não se trata de perder um membro do corpo, trata-se de algo mais intenso e profundo, é como perder o coração, a alma, a família”.
Em outras palavras, ele diz três coisas fundamentais em todos os torcedores de clubes de futebol: (a) por mais que se esforce não sabe dizer por que escolheu o clube, o que empresta um caráter meio mágico à opção; (b) sente que jamais poderá deixá-lo, sob pena de perder algo muito grande, maior que uma parte do corpo, “o coração, a alma, a família”, isto é, a identidade; (c) a, digamos, ‘vascainidade’ de Wanderson está fora dele e existe desde muito antes de seu nascimento, é como se fosse ‘uma verdade’ a que ele adere e que o faz integrar-se a um agrupamento humano com características próprias.
O mecanismo é praticamente o mesmo que os antropólogos que estudam povos indígenas chamam de totemismo, fenômeno de um agrupamento de pessoas, dentro de determinada etnia, considerar-se de determinado totem, comumente representado por um animal ou por uma espécie vegetal. Quando alguém se diz uma arara ou uma capivara, não significa que essa pessoa se sinta um desses bichos. O que ele está fazendo é afirmar sua identificação com determinado grupo, cuja representação é aquele animal. Da mesma maneira, o torcedor. Não são mais determinações nacionais ou étnicas, nem de cidades ou bairros que levam as pessoas a se dizerem torcedoras de clubes de futebol. Como o Wanderson deixou a entender, é difícil explicar o que faz alguém ser torcedor. E é interessante observar que dizemos: ‘sou Vasco’ ... ou Flamengo, ou Palmeiras, ou Grêmio. A identificação é tão grande que usamos o verbo ser. Os argentinos, igualmente ligados no futebol, dizem: “Yo soy de Boca”, “Yo soy de River”. Nesta fórmula está presente a ideia de pertencimento.
E não é só no futebol que o fenômeno se repete, dentro de sociedades que costumam acreditar que se orientam pela racionalidade e pelas leis racionalmente elaboradas. As identificações totêmicas acontecem em outros campos, como a política, onde figuras de pessoas costumam ser elaboradas coletivamente como símbolos, aos quais se agregam identidades de grupos.
Vejamos as figuras populares de nossa história política. Getúlio Vargas foi o ‘pai dos pobres’. Podemos fazer várias interpretações para essa escolha popular, as leis trabalhistas entre elas, a política nacionalista. Estes elementos racionais parecem insuficientes para explicar essa identificação popular, que aparecia na musica de Jackson do Pandeiro, que ficou famosa, com o seguinte estribilho: “O sorriso do velhinho faz a gente se animar”. Da mesma maneira, no caso de Vargas, o entendimento de traços característicos de seus opositores, associados às elites, a definição, na consciência popular, dos traços característicos do tipo de gente que o ‘perseguiu’ no final da vida, também acaba sendo a identificação de um tipo de figura totêmica. E, é claro, o suicídio e a carta-testamento, dizendo “o povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém”. A mesma reflexão pode se aplicar a outras figuras da política.
Nas representações totêmicas da política, assim como nas do futebol e de outras atividades humanas, estão cristalizadas complexas emoções, que não podem ser postas de lado quando se tenta entender a vida social.
(*) Jornalista – mauriciosiaines@gmail.com
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