Dalva Ventura
Thereza Barroso, como ainda é conhecida, mesmo a contragosto, é de fato e de direito a grande dama da memória friburguense. O imenso acervo do Pró-Memória, que há dois anos foi incorporado ao Centro de Documentação D. João VI, só existe por causa do empenho desta mulher chamada Thereza de Albuquerque e Mello. Tudo começou em 1975, quando ela começou a reunir e catalogar jornais e recortes, fotos, livros históricos e demais documentos da cidade que considerava de valor. Com o decorrer dos anos o Pró-Memória juntou um acervo que poucos municípios podem se orgulhar de ter. Como já dizia o velho Raphael Jaccoud, “a história de nosso Pró-Memória se confunde com a vida de Thereza. Não fosse ela, talvez nem existisse. Ela o criou e o vem acalentando como a um filho, no decorrer de tantos anos”.
A VOZ DA SERRA - Como surgiu o Pró-Memória?
Thereza Albuquerque e Mello – O Jaburu chegou aqui em casa um dia me perguntando se eu gostaria de trabalhar no Departamento de Cultura da Prefeitura. Eu pensei, puxa, estou sem fazer nada mesmo, vai ser maravilhoso. Fui então apresentada à professora Dilva Maria de Moraes, que era a secretária de Educação. Eu não a conhecia, mas houve uma empatia enorme entre nós e até hoje somos muito amigas. Naquela época a biblioteca também era subordinada ao Departamento de Cultura e uma das primeiras coisa que fiz foi perguntar à Margarida Liguori se ela estava recebendo os jornais. Quando soube que não, danei a pedir. O Laercio Ventura, por exemplo, me atendeu logo e nunca deixou de me mandar. Graças a ele temos hoje praticamente todas as edições do jornal, desde o primeiro número. Quem me atendeu também foi o Correio Friburguense, que já foi embora. Afrânio do Valle nos doou uma coleção de A Paz desde o primeiro número. O Pedro Cúrio, de O Nova Friburgo, também, ficamos com tudo o que tinha sobrado do incêndio que destruiu seu acervo. Tentei desesperadamente conseguir a coleção de O Friburguense. Soube pelo Cid Cardoso que estaria com um tio dele no Rio, que não tinha mais nenhum exemplar, uma pena. Quase morri de tristeza. Mas desde aquela época começaram a me mandar jornais antigos e eu ia guardando, catalogando. Tanto que consegui formar uma coleção muito boa da imprensa friburguense. Infelizmente não temos mais jornais na cidade, o único que sobrou foi A VOZ DA SERRA.
AVS - Você tinha alguma experiência em catalogação?
Thereza – Não, fui seguindo minha intuição. Primeiro arquivei por data, mas a Iracema Mastrangelo Moreira, que chegou depois e trabalhou dois anos comigo lá, catalogou todos os documentos que eu já tinha guardado e eram milhares. Até hoje, se alguém quiser procurar algo, é só procurar no catálogo da Iracema que vai saber em que caixa o documento está guardado.
AVS - Em que local ficava o Pró-Memória?
Thereza - Nós trabalhávamos numa salinha ali na parte de trás da Prefeitura. No começo não tinha nem onde guardar aqueles jornais. Pedi umas prateleiras para ir arquivando aquele material e instalaram umas tábuas de madeira que nem poderiam ser chamadas de estantes. Tudo muito improvisado mesmo. Mas o acervo foi crescendo. A Secretaria de Administração mandou para lá um caminhão cheio de documentos antigos, rasgados e sujos. Nós íamos separando e guardando em pastas. Até que, em 1976, o prefeito Heródoto Bento de Mello institucionalizou o Centro de Documentação Histórica Pró-Memória, que recentemente passou a ser Fundação D. João VI. Um velho sonho meu e do Raphael Jaccoud, pois assim o Pró-Memória ficou mais independente, podendo, inclusive, receber recursos de outras fontes. Com isso, o Guguti (Nelson Bohrer) está podendo realizar um trabalho inestimável para Nova Friburgo. Ele está realizando meu sonho, não sei quantos papéis ele já digitalizou, foi uma coisa gigantesca. Mas foram praticamente 37 anos juntando cada coisinha, cada foto, cada jornal.
AVS - Você saberia explicar de onde vem seu interesse pela memória de Nova Friburgo?
Thereza - Eu sei, sim. É por causa da minha paixão pela minha terra. Sim, embora ela às vezes nos pregue peças, eu me sinto aninhada entre essas montanhas. Além do mais, eu sempre gostei de história, então a hora que descobri que podia juntar os cacos da nossa história, me senti realizada.
AVS - Quais as pessoas que, a seu ver, mais contribuíram para o resgate da memória friburguense?
Thereza – O Pedro Cúrio, por exemplo, teve um papel muito importante. O Martin Nicoulin, não precisa nem dizer, fez um trabalho maravilhoso. O Carlos Jayme Jaccoud, que resgate minucioso da nossa história ele fez. Imagine você que o Jayme transcreveu todas as atas da Câmara, de 1820 a 1890. Havia páginas onde a letra já estava tão apagada que quase não dava para ler. É inexplicável como o Jayme conseguiu aquilo. Aquele livro tem me ajudado muito, acho que todo friburguense deveria ler, pois através dele se pode acompanhar toda a história da Câmara. Antes, a Maria José Braga já tinha transcrito algumas atas, mas resumidamente. O Jayme não, ele transcreveu cada ata, uma a uma, de 1820 a 1890. É um trabalho, assim, que não tem tamanho, só amando muito esta terra, como ele ama, como seu irmão, Raphael, também amava. A diferença é que o Raphael era muito espirituoso, conta aquelas histórias com muita graça, embora, por vezes, sem muito rigor histórico, misturando o que aconteceu de fato com um certo molho ficcional.
AVS - E sua própria história, Thereza? Fale um pouco dela...
Thereza - Nasci e cresci aqui, sou descendente de suíço, alemão e português. Fui alfabetizada por dona Jandira Lima, estudei um ano no Helena Coutinho, depois fui estudar como interna no Instituto Lafayette, no Rio, de 1938 a 1945. Eu morria de saudades e não via a hora de voltar para cá, tanto que no fim do segundo ano eu bati o pé e não terminei porcaria nenhuma. Mamãe ficou aborrecida, mas ela sentia saudade de mim também... Fui estudar piano com dona Mariana, mas não gostei. O que sempre fiz foi ler. Não tenho diploma algum, mas lia, lia, lia sem parar... Depois que voltei vivia na livraria do Dominguinhos lendo. Aquilo ali era uma bagunça, mas eu era tão rato de livraria que sabia onde ficava cada livro.
AVS - O Pró-Memória foi seu único emprego?
Thereza – Sim, antes de entrar para a Prefeitura eu não trabalhava. Aliás, eu nunca trabalhei. Aquilo para mim sempre foi tão prazeroso que não posso chamar de trabalho. É tão prazeroso, tão gratificante que não sinto que estou trabalhando! E, repare bem, quando falo no Pró-Memória nunca falo no passado porque não me desliguei de lá. Mesmo agora, aos 83 anos, continuo na Fundação, só vou sair quando morrer. Embora já vá pedir aposentadoria, não vou me afastar do Pró-Memória de jeito algum.
AVS - Mas como todas as moças da época você também tinha uma vida social, não? Isto é, frequentava os bailes, passeava na praça...
Thereza - Claro, tinha os bailes do Clube de Xadrez. Minha juventude foi maravilhosa, minha infância, então! A gente morava na Rua Oliveira Botelho, naquela época ninguém fechava porta, jogava bola no meio a rua, soltava fogos...
AVS - Você sempre foi uma mulher muito à frente de seu tempo, não?
Thereza - Mais ou menos (risos)... A única coisa que aconteceu comigo é que desde jovem eu sempre aceitei todas as coisas, o que barbarizava os outros, para mim era natural. Por exemplo, homossexualismo. Aqui em Friburgo, como em todo lugar, era muito escondido, muito, muito escondido, mas a mim nunca chocou. De verdade.
AVS - Consta também que você foi uma das primeiras mulheres da cidade a se separar, a se desquitar, não?
Thereza – De jeito algum, que isso! Fiquei casada quase sete anos e não tivemos filhos, mas continuamos nos falando sem problemas. Quando eu me separei, no começo da década de 70, já tinha mulheres à beça separadas e não acho que elas eram mal vistas não. Naquela época isso já era encarado com certa naturalidade. Mas até hoje morro de pena das pessoas que se separam, sobretudo quando existem filhos.
AVS - Até hoje seus contemporâneos falam que você foi a mulher mais bonita de Nova Friburgo...
Thereza - Será? Todo mundo fala que eu fui, sim. Eu me achava muito... saudável, digamos assim.
AVS - Voltemos ao Pró-Memória. Nova Friburgo deve sua existência a quem?
Thereza – O prefeito que mais valorizou aquilo ali chama-se Heródoto Bento de Mello. Ele às vezes aparecia lá e dizia “Vim refrescar minha cabeça”. De fato, o Pró-Memória é o melhor local para se trabalhar dentro da Prefeitura. Uma vez uma funcionária que tinham mandado para lá comentou que não sabia como a gente gostava de trabalhar naquilo. Sabem o que eu fiz? Pedi que a removessem imediatamente. Como você vai trabalhar num negócio se não gostar? Você tem paixão pela sua profissão, não tem? Se não tiver, não faz porcaria nenhuma ou só faz porcaria. O Guguti, por exemplo, tem verdadeira paixão por aquilo lá. É igual a mim.
AVS - Fale da importância do Pró-Memória para a cidade.
Thereza - Aquilo ali tem um valor tão grande... Porque se você não conhecer seu passado, não vai viver um presente bom. Graças ao Pró-Memória temos uma história tão bem guardada. O que já saiu de tese de mestrado, de doutorado dali é uma grandeza. Eu tenho uma prateleira com todas estas teses, algumas feitas por pesquisadores de todo o país. Poucas cidades do interior, mesmo as do porte de Friburgo, têm algo sequer parecido com a gente. Pensando bem, acho que nenhuma. Uma vez vieram uns rapazes de Cantagalo ver como eu tinha começado para eles fazerem um Pró-Memória lá também, mas não sei se fizeram. Nasceu nesta cabeça de maluca aqui.
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