Testemunha e agente de mudanças

quinta-feira, 20 de outubro de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Testemunha e agente de mudanças
Testemunha e agente de mudanças

Maurício Siaines

Dirceu Spitz, 85 anos, é olhado pela população de Lumiar com certa reverência. Sua família foi a última proprietária da fazenda formada pelas terras do atual centro da localidade, cuja criação é atribuída a Philipe de Roure, nobre francês vindo para o Brasil junto com o rei de Portugal Dom João VI, em 1808. Carlos Maria Marchon foi o sucessor dos Roure e, desde 1929, a fazenda passou a Eugênio Guilherme Spitz, pai de Dirceu.

Além de ter feito parte de uma família notável, Dirceu foi vereador por seis mandatos, entre 1967 e 1993. É ao mesmo tempo testemunha e personagem das mudanças vividas por Lumiar, tendo sido decisivo para sua conformação urbana. Em entrevista para A VOZ DA SERRA, na quinta-feira, 13 de outubro, Dirceu contou algumas histórias e fez algumas reflexões, abaixo resumidas.

A VOZ DA SERRA – O senhor é nascido em Lumiar?

Dirceu Spitz – Não, nasci em Barra Alegre, 4º distrito de Bom Jardim, em 1926.

AVS – E seu pai era ...

Dirceu Spitz – Eugênio Guilherme Spitz. Ele foi o chefe ... naquele tempo chamava-se de “coronel”, não é? Era como se designava uma pessoa de respeito na localidade. Meu pai se casou com minha mãe, cuja família era de Barra Alegre, era uma família italiana. E meu pai foi para lá para lidar com lavoura de café para ganhar dinheiro.

AVS – E, pelo jeito, deu certo, não é?

Dirceu Spitz – Deu, deu certo porque ele ganhou dinheiro para comprar praticamente Lumiar todo.

AVS – Como foi isso de comprar Lumiar todo?

Dirceu Spitz – O Carlos Maria Marchon era o dono de tudo...

AVS – ... daquela área que hoje é o centro de Lumiar.

Dirceu Spitz – Tudo ali em volta. Meu pai veio, em 1929, e acertou a compra por 22 contos de réis, como se dizia antigamente. Uma semana depois, quando voltou a Lumiar para fechar ao negócio, tinha havido uma invasão e ele disse ao Carlos Maria Marchon que não estava mais interessado porque os invasores tinham tomado uma porção de coisas da sede da propriedade. Propôs que a venda fosse feita por 20 contos de réis e o Carlos Maria Marchon aceitou.

AVS – Então, o senhor cresceu ali.

Dirceu Spitz – Cresci naquele chalé [o casarão da praça do centro de Lumiar atual]. Depois, aos 24 anos [em 1950] me casei. Meu primeiro filho, Paulo Spitz, nasceu em 1951.

AVS – O que o senhor fazia?

Dirceu Spitz – Naquele época, era lavrador.

AVS – Em plantação de quê?

Dirceu Spitz – De inhame, de feijão, arroz, batata, plantava tudo.

AVS – Nas terras da sua família.

Dirceu Spitz – É naquela região toda.

AVS – O senhor trabalhou e viveu assim até quando?

Dirceu Spitz – Até pouco antes de me casar. Meu pai tinha comprado uma máquina de café. Ainda se produzia naquela região abaixo de Lumiar—Santa Luzia, Quilombo, São Romão, Bananeira, Sana—cinco mil sacas de café por ano. E vinha tudo ali para a máquina que eu comandava.

AVS – E a máquina fazia o quê?

Dirceu Spitz – Tirava a casca [dos grãos de café] ... produzia por dia 150 arrobas [2,2 toneladas aproximadamente] de café preparado.

AVS – Ali atrás do chalé ainda existe uma área cimentada. Para que servia aquilo?

Dirceu Spitz – Era o que se chamava de terreiro. Depois de colher o café ele era posto para secar no terreiro. Depois ele ia para a máquina para ser pilado, como se dizia.

AVS – E transporte e comercialização do café?

Dirceu Spitz – Nessa época já era por caminhão. Havia os torrefadores em Friburgo e eles compravam o café.

AVS – Então, nos anos 1950, ainda existia essa produção de café.

Dirceu Spitz – Certo.

AVS – E como parou?

Dirceu Spitz – Parou porque o café acabou, as lavoras foram ficando de uma maneira que não produziam mais. E o pessoal foi largando.

AVS – A terra não produzia mais ou não tinha como vender?

Dirceu Spitz – Tinha como vender, o café sempre foi um produto de venda. Não compensava mais tomar conta da lavoura de café porque ela não estava dando mais, não produzia mais o caroço. As terras iam ficando fracas.

AVS – Então, o problema não foi de mercado.

Dirceu Spitz – Não, em absoluto.

AVS – De acordo com o que já conversamos, o senhor foi levando sua vida desse modo, cuidando da lavoura, do preparo do café e em 1967, com 41 anos, tornou-se vereador pela primeira vez. Como foi essa decisão de se dedicar à política? Por que o senhor quis fazer isto?

Dirceu Spitz – Desde os 14 anos eu acompanhava meu pai na política. Ele foi vereador duas vezes e eu o acompanhava desde criança, tinha tendência para isto. E como o lugar não tinha recurso nenhum, eu atendia o povo em necessidades como levar para um hospital, para uma maternidade, para levar ao Rio de Janeiro. Eu fazia tudo isto em meu carro, de graça.

AVS – Na época qual era o partido?

Dirceu Spitz – Primeiro o PSD (Partido Social Democrata), depois, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), mai tarde, PMDB. Fui eleito vereador seis vezes, a primeira vez em 1967. Exerci a função por 26 anos porque um dos mandatos teve seis anos.

AVS – Como era a remuneração dos vereadores naquela época?

Dirceu Spitz – Nos dois primeiros mandatos não recebíamos nada. Depois é que começou a haver uma gratificação. Hoje, ser vereador é um comércio, é uma profissão com salário de R$ 7.700.

AVS – No seu tempo, as pessoas que se elegiam continuavam fazendo seus trabalhos. E como era a atividade?

Dirceu Spitz – Havia duas sessões por semana, como hoje. Eu ia para Friburgo, ficava na casa de meu concunhado e, no outro dia de manhã, voltava para Lumiar.

Depois de lavrador, fui para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), fui encarregado geral, tomava conta de 20 homens que trabalhavam nessa estrada de Lumiar a Mury. Fiz esse trabalho durante 20 anos. A estrada era de chão e o trabalho era cuidar desse chão da estrada. Depois, como vereador, não trabalhava mais na estrada. Depois, veio a época da minha aposentadoria com 30 anos de serviço. Mas a maior parte do meu serviço foi depois, na Câmara de Vereadores.

AVS – Então, só podia ser vereador quem trabalhasse, tivesse uma fonte de renda.

Dirceu Spitz – É, era diferente. Hoje é emprego mesmo.

AVS – Naquela época, era mais difícil ir de Lumiar a Friburgo. Era como se fosse mais longe. O senhor se sentia mais um vereador de Lumiar ou de Friburgo?

Dirceu Spitz – De Lumiar, me considerava uma vereador da roça, do interior.

AVS – O senhor era o único vereador de Lumiar?

Dirceu Spitz – Houve também o Ivan, que se elegeu duas vezes. Nessa época chegou a haver dois vereadores de Lumiar.

AVS – Quantos eram os vereadores em Nova Friburgo?

Dirceu Spitz – Éramos 19. Depois o número foi reduzido para 12 e agora vão ser 21 vereadores.

AVS – Os vereadores de outros lugares também deviam se considerar, como o senhor, vereadores desses lugares, isto é, preocupavam-se mais com a localidade do que com o conjunto do município, não é?

Dirceu Spitz – A mesma coisa, eram representantes de suas localidades, daqueles distritos.

AVS – O senhor assistiu a muitas mudanças. Hoje o senhor está aqui, com sua idade de 85 anos, com saúde. mas é muita mudança, não é? O que o senhor diz a respeito da tantas mudanças?

Dirceu Spitz – É, é muita mudança. É o desenvolvimento.

AVS – Mas o padrão de vida das pessoas era melhor, não era?

Dirceu Spitz – Sim. Isto é impressionante porque tudo aconteceu de repente. Lumiar tinha meia dúzia de casas. Quando fui vereador, nós calçamos aquela área toda, fizemos ponte, cuidávamos das estradas, o que o distrito precisava.

Meu irmão, Acyr Spitz, era extraordinário, era o administrador do distrito, muito trabalhador, muito dedicado. Eu e ele tivemos a capacidade de reunir aquelas terras de meu pai e fizemos um plano de cidade em Lumiar. Toda aquela organização que existe lá foi criada por mim e por meu irmão, pois as terras eram de meu pai. Cada herdeiro tinha direito a um alqueire de terra, 27 mil m². Se entregássemos essas terras a cada herdeiro eles venderiam suas partes aos pedacinhos e não haveria cidade. Nós tivemos essa visão.

AVS – Essa organização urbana permitiu o desenvolvimento do turismo, não?

Dirceu Spitz – O turismo veio depois que Lumiar começou a se desenvolver mesmo. Lumiar não tinha nada, ninguém procurava Lumiar. Depois, com o asfaltamento da estrada Mury-Lumiar é que foi crescendo.

[O asfaltamento da estrada aconteceu no início dos anos 1980. A luz elétrica chegou em dezembro de 1984 e o primeiro posto telefônico é de 1994, chegando os telefones às residências e ao comércio em 1996. Os sinais das empresas de telefonia celular no início da primeira década do século 21].

AVS – Ainda falando das mudanças a que o senhor assistiu, antes havia aquela vida tradicional da terra, ligada à agricultura ...

Dirceu Spitz – ... todo ano havia a festa do padroeiro [em 20 de janeiro] e tínhamos a banda [Euterpe Lumiarense]. Era uma coisa notável. A banda saía para tocar em festas fora do distrito, ia a outros municípios. Eu acompanhava tudo isso.

AVS – Astrogildo Mozer foi uma figura importante para a banda, não foi?

Dirceu Spitz – Ele ajudou muito. A construção da sede foi feita através dele, na época do Heródoto, que era o prefeito. Ele foi o causador [da construção da sede]. Ele era um cara progressista. Isso aconteceu em Lumiar: a chegada de outras famílias com o progresso.

AVS – O que o senhor está chamando de “progressista”?

Dirceu Spitz – É o cara que tem interesse de que o lugar vá para frente.

AVS – Naquela época tão progressista, em que o país inteiro passava por mudanças, durante o governo de Juscelino Kubitschek, houve um conflito entre católicos e evangélicos de grandes proporções. Como foi isso?

Dirceu Spitz – Teve até guerra. Os católicos foram lá quebrar a igreja deles em Boa Esperança.

AVS – Houve uma época em que muita gente saiu daqui, principalmente para o Paraná. Como foi isso?

Dirceu Spitz – Muita gente foi embora para o Paraná porque era melhor para ganhar dinheiro na lavoura.

AVS – Depois, chegou um momento em que Lumiar começou a ser descoberto por diversas pessoas ...

Dirceu Spitz – ... que ficaram encantadas com Lumiar. Temos muita gente de fora aqui.

AVS – As mudanças têm acontecido tão rapidamente que muitos jovens têm ficado perdidos. E aí vem o problema do alcoolismo e das drogas. Como senhor vê isso?

Dirceu Spitz – Essa é uma situação difícil que o país está vivendo, difícil de resolver, porque o progresso vem, mas também vem o que é ruim.

AVS – O que o senhor diz, em poucas palavras, sobre toda essa mudança?

Dirceu Spitz – Realmente é uma coisa impressionante, nós fomos crescendo dentro daquele ambiente, pensando nas coisas que poderiam trazer benefícios para o lugar. Acredito que o maior desenvolvimento de Lumiar aconteceu depois da Estrada Serramar. A estrada é perigosa porque os órgãos ambientais não deixaram abrir as curvas. Foi preciso seguir o que já estava aberto ...

AVS – ... que era pouco mais do que uma trilha de burros.

Dirceu Spitz – Pouca coisa além dos caminhos das tropas de burros. A estrada foi uma obra extraordinária para nós. Fez muita diferença. Hoje, aos sábados e domingos muita gente vai para Lumiar porque é uma região que tem rios e matas.

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