A Flip, Festa Literária de Paraty (que este ano ocorre de 29/06 a 3/07), é um festival literário anual realizado naquela cidade, considerado um dos principais eventos do gênero no Brasil e na América do Sul. Apesar de ainda receber críticas quanto à representatividade de determinados nichos sociais — fala-se, por exemplo, da falta de representatividade negra entre os autores, além de se constar a predominância de homens, tanto nas mesas quanto nas homenagens —, em 2016 a organização reverencia, numa só tacada, a voz feminina e a literatura marginal, tantas vezes relegadas ao patamar de “excêntricas”, ao homenagear a autora Ana Cristina Cesar (cuja história você pode conferir na página 6 deste caderno). A realização da feira traz à superfície duas necessidades friburguenses: a primeira, quanto à ausência de festivais tradicionais que façam jus à quantidade e qualidade da produção literária na cidade. Friburgo respiraria festivais literários, se eles existissem. E, com esse pensamento, vem a segunda necessidade: de reconhecer e valorizar autores cujas histórias cruzem com as nossas, da nossa cidade. Havendo um grande festival em Friburgo, quem seria hoje a nossa “Ana Cesar”? Para mim, seria Teresa Jardim.
Difícil encontrar um ponto de partida para começar a contar a história de Teresa. Imagino que desde a barriga da mãe ela já fosse festa e furor, arrebatamento e agitação. Uma ou outra vez, em recortes de conversas de Rua Portugal ouvi falar dela, mas foi na casa de Beto Grillo, produtor cultural de Friburgo e grande amigo meu, que Teresa ganhou forma, cores e rimas diante de mim. Beto, árduo trabalhador da arte marginal, me contou diversas histórias sobre a mulher que fazia performances poéticas nua e vendia sua poesia nas mesas dos bares friburguenses, com filhos para todos os lados. “Você já leu o Manifesto da Poesia Pornô?”, Beto me perguntou. Então, eu li. A imagem da mãe poeta louca me tomou completamente e foi ali que eu decidi. Já que não se pode criar um festival literário em Friburgo de uma hora pra outra, eu ia, pelo menos, encontrar Teresa e escrever sobre ela.
E assim eu fiz. A internet ajuda muito nessas horas. Achei blog, e-mail, peguei telefone. Entre uma sala e outra do jornal, esgotando ao máximo os parcos recursos de um celular Samsung velho de guerra, pareço um pajé moderno em plena pajelança high tech, atrás das quatro listrinhas do Wifi. Falando pra lá e pra cá entre os colegas de redação, é a primeira vez que faço uma entrevista por vídeo. Do outro lado, a poeta. Não, não uma poeta qualquer, escrito assim, displicentemente, não faço verdadeira jus. Era Teresa Jardim, A poeta. Era Teresa mãe, Teresa nua, Teresa mulher amada — e Teresa despirocada também, comendo pizza na tela miúda. Eu queria ter sido uma mosca navegante tempo-espacial em 1980 para contar àquela Teresa, daquela época, que em pouco mais de 30 anos viveríamos todos para ver essas modernidades: ela, que já era tudo isso e isso tudo junto, e eu, que ainda nem tinha nascido.
A Dama da Bandalha (ou A Gang)
Carioca, de família muito bem colocada na sociedade — Teresa é filha de Reynaldo Jardim (1926-2011), um dos mais respeitados e reconhecidos jornalistas do Brasil —, a ligação de Teresa com Nova Friburgo começa ainda na infância, quando vinha a passeio para um sítio na região, mas é nos anos 80 que o flerte vira relacionamento sério. Naquele momento, em que o país vivia ainda sob a sombra dos males que a Ditadura Militar havia causado, principalmente para o meio artístico e cultural, um movimento começava a se formar pelas ruas do Rio de Janeiro, envolvendo vários artistas marginais — entre eles, Teresa: o movimento da Arte Pornô.
Não era um pornô assim, pornográfico, erótico. O objetivo do movimento não era, para nada, fazer a pornografia comercial, clássica, mas sim compreender a lógica da pornografia e trazê-la para um universo de subversão e fazer dela uma ferramenta de combate político — o erotismo era inicialmente aceito pela Ditadura. O movimento da Arte Pornô foi concebido pelo poeta Eduardo Kac nos anos 60, mas tem seu lançamento público já nos anos 80, com o coletivo Gang, através da criação do “Manifesto Pornô” em maio de 1980, publicado no zine “Gang” n.º 1 em setembro de 1980. O movimento publicou três edições do zine, além de livretos, etiquetas, camisetas, gravuras, histórias em quadrinhos, livros de artista e antologias de uma intervenção artística intitulada “Pelo Topless Literário”, que levou as performances dos artistas para as areias do Posto 9, na Praia de Ipanema, em 1982. Uma escolha estratégica: o Posto 9 era considerado, na época, o epicentro da praia, ou seja, um importante ponto focal da cidade. A performance terminava com um nu coletivo no mar. Ações parecidas foram feitas também na Cinelândia.
Logo após o Topless Literário, Kac convida Teresa para se juntar a eles e formar o braço performático do movimento — a poeta ficaria conhecida, no grupo, como “A Dama da Bandalha”. Pois bem: eis que a dama da bandalha conhece Leniel.
Uma saga chamada Teresa, Leniel e os sete filhos em Friburgo
(ou “O Poético”)
Justo nessa hora, o vídeo trava e nossa ligação cai. Teresa mora hoje entre Uberlândia-MG, Caldas Novas e Catalão, em Goiás, —“eu fico um pouquinho em cada cidade, um pouquinho com cada filho” — e no fundo eu sei que não é a distância de tempo, nem de gerações, nem de espaço que nos separa, mas sim o velho celular Samsung que trava toda hora, e travou mais uma vez. Dessa vez, numa imagem quase poética, tão bonita que até printei. Eu estava no canto superior esquerdo, pequenininha, toda sorridente e tinha acabado de perguntar a Teresa como e quando ela havia conhecido Leniel. Teresa estava tomando toda a minha tela, com os cabelos mais poetas que eu já vi.
De alguma forma, tudo o que ela disse de mais bonito a respeito do encontro com Leniel ficou ali, eternizado naquelas imagens que o celular não captou, naquela voz de robô que ele reproduz logo nas horas mais importantes do assunto. Mas quando nos ligamos de novo, dessa vez sem vídeo, não pedi que ela repetisse. Mesmo com a voz robótica de um celular caótico eu entendi a doçura daquele momento. No meio de uma intervenção poético-pornográfica nas areias das praias do Rio de Janeiro (ou pode ter sido na Cinelândia, porque ela citou isso também), um encontro doce, como devem ser todos os encontros entre grandes amores. Assim eu imagino o encontro; o amor, por vezes, é bom assim, imaginado. Talvez ficasse até bonito usar esse momento do texto para apresentar uma das poesias de Teresa — e os seus sete filhos e sua netinha.
Não se pode
“remar contra a maré”
O máximo que se pode fazer
É continuar remando
A fim de evitar naufrágio
Pois bem, os dois se conheceram numa das intervenções do movimento, entre 1980 e 1982. Cada palavra de Teresa sobre Leniel, seu companheiro, transborda em sentimentos bons, energia boa. Aqui entra Nova Friburgo nessa história: aqui eles estabeleceram morada, entre 1989 e 1999, venderam muitos exemplares de uma coletânea de poemas que eles mimeografavam na época, o zine ‘O Poético’, e aqui também criaram os filhos — sendo a mais velha, Joana, filha apenas de Teresa, do primeiro casamento. Essa foi uma das imagens que Beto Grillo me descreveu sobre Teresa. Segundo ele, era comum vê-la com as crianças, algumas ao colo e outros em fila, enquanto ela fazia suas performances e vendia os zines pelos bares da Rua Portugal, pela praça. “No Bruno’s”, como bem lembrou o amigo David Massena. Teresa, a mulher que, em plenos anos 80 — quer dizer, Friburgo ainda meio que está nos anos 80 até hoje mas naquela época os anos 80 eram mais anos 80 ainda — mostrava o corpo, fazia poesia punk, fosse na praia da cidade grande, fosse na praça da cidade pequena... Enquanto mulher, mãe, amada, poeta, doce e louca, Teresa me representou geral.
Com os dois pés na História
O cinegrafista e fotógrafo Belisário Franca acompanhou a “Gang” entre 1980 e 1982, produzindo a documentação fotográfica de muitas de suas intervenções/performances. E o movimento começou a ser redescoberto em 2010, quando a galeria de arte Laura Marsiaj exibiu a série “Pornogramas” (1980-1982) de Eduardo Kac. A primeira exposição em museu do Movimento de Arte Pornô foi no Museu Reina Sofia, em Madrid, na exposição “Perder a Forma Humana,” realizada em outubro de 2012, e documentada em catálogo, e no Brasil a curadora e crítica literária Fernanda Nogueira realiza diversas exposições sobre o movimento. Teresa cita ainda que a “geração mimeógrafo” é bastante apreciada na Bahia, e que no centro cultural do Pelourinho o movimento da Arte Pornô ganhou força, sendo muito conhecido e valorizado lá. “Quando eu cheguei lá, todo mundo me conhecia, foi um barato”.
Optei por duas coisas nessa matéria: não invadir demais (não perguntei, por exemplo, os nomes dos filhos, só sei da Joana e do Solter, que é TI e estava promovendo a interatividade pra nós) e nem tomar nota nem depoimento de outras pessoas. Quer dizer, minha parceira de trabalho Ana Borges embarcou comigo nessa viagem e me traçou um panorama sobre toda “essa turma do Rio de Janeiro”, como ela costuma dizer. Então, tive mais uma visão de Teresa. E quando contei para os colegas o tema do caderno, a Andréa Freze, da diagramação, também conhecia Teresa, me dando tantas outras visões. A poeta ficou conhecida e viveu muitas histórias por aqui; por isso esta matéria-homenagem. No fim... fui atrás de ter minha própria visão sobre Teresa.
Leniel morreu no ano passado. Entre Uberlândia, Caldas Novas e Catalão, a dama da bandalha segue alimentando seu blog standauppoetico@blogspot.com (se eu pudesse ser uma mosca navegante tempo-espacial, contaria para ela nos anos 80 que um dia ela estaria disponível em todas as casas). Comendo pizza e falando da sua vida para uma moça desconhecida e desajeitada, mas que, no fundo, pode lhe soar familiar. Porque a minha última pergunta foi “Teresa, qual a sua melhor lembrança de Friburgo?”. E ela respondeu: “Tudo que é de Friburgo é bonito, todas as lembranças são bonitas, tudo me soa familiar”. Um último pedido: “Peço que todos redobrem sua atenção aos carentes no inverno e que deem apoio aos artistas e poetas e escritores, como fazem no Pelô”, ela diz, antes de se despedir, me mandando beijos.
Eu, que nunca te vi, Teresa, já quero te ver de novo. E como antigamente: ao vivo e a cores, zine, revista e poema, sem as travas de um velho aparelho celular.
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