- Flores?
- Pode ser, desde que já tenham tirado as formigas das pétalas.
Ela responde como se o rapaz estivesse oferecendo chocolates. Não está. Tampouco ela quer essas flores murchas, oferecidas por esse camarada de unhas encravadas e sorriso carente de molares – meio ridículo isso, com o ar entrando de um lado da boca em arco e saindo pelo outro, o sujeito empenado, olhos apertadinhos, uma felicidade mal contida em saltinhos (as bases dos sapatos gastos que insistem em tocar rapidamente o chão, apenas para serem impulsionados de volta ao espaço).
O pobre coitado dá uns tapas de leve nas rosas, certifica-se de que as formigas caíram todas nos paralelepípedos, perdendo-se entre as rochas quadriculadas, e entrega o ramalhete à mocinha adorada, descabelada, metida em Havaianas, olhos verdes empapuçados, uma peça mal esculpida de madeira pendurada no pescoço comprido e abarrotado de cicatrizes.
Ele observa os dedos delas recolherem-se, as unhas arranhando o solado dos chinelos – seria uma identificação de felicidade naqueles olhinhos que nunca transpareciam nada?
O casal de mendigos passava assim, as noites em claro, abraçados nas escadarias, mal cobertos, olhos baços, enuviados pelo álcool, divertindo-se, divertindo os passantes, arrancando moedas aqui e ali com olhares pidões.
D’outra feita, quando se enchiam daquilo tudo, quando o frio ou a fome ou a sobriedade apertavam, se engalfinhavam, provocavam espetáculo natural, ainda que ninguém parasse, que todos fingissem não ver, rolavam as escadas, se chutavam, xingavam e quase sempre encerravam o expediente em abraços amorosos.
Há uma compreensão honesta aqui, em que a realidade é uma só, sem espaço para aberturas, sem esperanças, sem ruidosas recordações (embora, nos primeiros dias, deitados nas escadarias, mal e mal escondidos em caixas de papelões, tenham chorado diante das lembranças de dias anteriores que, por alguma razão, que não cabe a nós passantes, não deverão voltar), carregados em uma muito deles, que ninguém tem nada a ver com isso, mas, por favor, abram as carteiras, mesmo que de vez em quando, joguem algumas moedas que, se for do seu prazer, juramos por Deus, até engatinhamos, catamos as moedas, agradecemos de joelhos, mãos juntas, como quem ora. Absurdamente gratos.
E quando se oferecem flores, os maltrapilhos apenas dão um jeitinho de aflorarem também, espremendo-se através das paredes, minimamente felizes, porque ainda estão vivos.
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