Sobre lutas e brincadeiras ...

quinta-feira, 11 de outubro de 2012
por Jornal A Voz da Serra

Prof. R. Lengruber
A democracia é resultado de esforços e lutas de gerações. As liberdades e direitos há tanto almejados são o fruto de muita lágrima, muito suor, mas, acima de tudo, muito sangue. A violação de direitos humanos básicos não foi capaz de contar a luta para que determinadas conquistas fossem alcançadas. A democracia, numa palavra, resume a conquista de tudo isso.
As gerações nascidas depois dos anos oitenta não compreendem bem o que tudo isso significa. Na escola, professores não podem se permitir esquecer essas lições. Em casa, pais e avós devem contar e recontar sempre nossa história. Sem a consciência da caminhada, fica cada vez mais difícil a compreensão das nossas conquistas; do valor e da fragilidade do que ainda é tão fácil de se perder de novo.
Ocorre, porém, que lutas são sempre circunstanciais. Estão sempre contextualizadas. Suas honras e suas glórias dependem, invariavelmente, de seu tempo e de suas causas. Como qualquer evento histórico, as lutas travadas e, principalmente, os atores envolvidos correm o risco de cair em anacronismos e desvios de ideal. Há, sempre, o perigo de não saber a hora de parar. Vencidos nem sempre se dão por derrotados. Vencedores, poucas vezes percebem que a batalha se encerrou.
Pior ocorre quando a luta deve continuar mas suas causas passaram por transformações. E quando, pior ainda, seus personagens não se apercebem que os fundamentos e os entornos mudaram.
Embora seja muito mais comum que se imagina, lutar hoje uma luta de ontem é pior do que não lutar. Primeiro porque se corre o risco de errar as razões da luta e, segundo, porque se cometerá a injustiça da falsa acusação e a insensatez da alienação.
Quando se luta uma luta de outro tempo o grande equívoco que se comete é não conseguir êxito nem credibilidade, mas, mais grave ainda, é a permissão que ideias de outros tempos tomem conta da mente: a isso se dá o nome de alienação. Curioso é que aos lutadores, alienado é o mesmo que xingamento!
Fato é que os tempos mudaram e as lutas, embora urgentes e necessárias, devem mudar também. Devem aprender a se atualizar. Compreendo que aguerridos lutadores devem cerrar dentes e correr de encontro aos seus adversários; daí talvez sua obtusa capacidade de ver a realidade tal como se coloca no presente.
Quem muito se dá a uma causa às vezes se perde no caminho e não consegue se atualizar. Mas é fato também que os lutadores que fizeram reais e concretas transformações na sociedade aprenderam com ela a se atualizarem: dela aprenderam novos rumos para a luta.
Triste é quando gente do tempo de hoje quer lutar as lutas de ontem. Gente que, sem uma causa sua de verdade, insiste numa glória que não lhe pertence e se permite levar por um ideal que também não é seu ou, ao menos, já caducou.
Lutadores caducos são barulhentos e chatos; insistentes e desagradáveis. São seres que não têm causa sua e se admiraram, talvez numa aula mais acalorada de História, infantilizadamente, por uma luta de gente séria que lhes antecedeu e que, seguramente, os desabonaria em seu anacronismo estéril e em sua verborragia enfadonha.
Esse tipo de luta está mais para brincadeira de adultos que ainda vivem na adolescência do que para causas sérias que podem transformar a realidade.
Lutar contra ditadores é uma coisa: luta-se para conquistar liberdade. Lutar para viver livremente, numa sociedade democrática e plural, é outra: luta-se, em primeiro lugar, contra si mesmo; contra o que mora dentro de nós e nos atrapalha a aceitar o outro como alguém com quem conviver e construir.
Na democracia, o maior de todos os desafios é a imperiosa necessidade da convivência. Os bons de luta, de verdade, são filhos de seu tempo e sabem discernir as lutas que são suas realmente.
Duro é ter que conviver com guerreiros de histórias de fantasia e de faz de conta. Gente que, em vez de envidar força e inteligência na luta nossa de cada dia, prefere se lambuzar nas delícias dos discursos sem chão e sem horizonte. Gente que brinca de luta. Gente que, brincando, ofende e machuca. Afasta. Adolescentes de barba e cabelos brancos que preservam, ainda, o vocabulário de um tempo que já venceu. Gente que canta música de passeatas de quarenta anos atrás. Ou gente que se mobiliza na internet como se estivesse no comício das diretas. Pura brincadeira de criança! Alienação!
Na democracia, há lutas que devem ser empreendidas, mas a maior de todas é a árdua aprendizagem da tolerância e do respeito.
Lutar é indispensável. Vencer é possível. Mas aprender é sempre necessário. Aprender, sobretudo, a respeitar, a cooperar e a conviver.
Brincar, embora indispensável ao amadurecimento psicológico das crianças, tem seu tempo e seu prazo. Brincar como se estivesse lutando é banalizar a luta. É desacreditar os ideais sérios que nos legaram instituições ainda em construção nesse país de tantos desmandos e injustiças. Lutar como quem brinca é, simplesmente, para se desconsiderar.
Para mim, aqui mora a maior luta de todas hoje: conviver com quem vive noutro tempo, brincando de ser sério e atrapalhando quem seriamente quer trabalhar.
Mas ... há que permanecer na luta, apesar de tudo!

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