O cineasta carioca Silvio Tendler produziu e dirigiu mais de 70 filmes entre curtas, médias e longas-metragens em formato documental, além de 12 séries, em sua trajetória de realizador, iniciada há quase 50 anos. Hoje, aos 67 anos, é conhecido como "o cineasta dos vencidos" ou "o cineasta dos sonhos interrompidos" por retratar em seus filmes personalidades como Jango, JK, Carlos Marighella, entre outros, como os Trapalhões.
Em 2009 lançou “Utopia e Barbárie”, produção que levou 19 anos para ser concluída. Gravado em 25 países, foi considerada uma obra-prima pelo jornalista Mauro Santayana. “Sua visão pessoal do que foram o mundo e o Brasil neste período é antológica, para dizer o mínimo, e representa o clímax de uma carreira”, elogiou.
Tendler é formado em História pela Universidade de Paris VII, com mestrado em Cinema e História pela École des Hautes-Études/Sorbonne e especialização em Cinema Documental aplicado às Ciências Sociais, no Musée Guimet, também na Sorbonne. Em 1981 fundou a Caliban Produções, produtora direcionada para biografias históricas de cunho social.
Seu acervo particular de imagens conta com mais de 10 mil títulos sobre a História do Brasil e do mundo dos últimos 50 anos. Três das maiores bilheterias de documentários na história do cinema brasileiro, são dele: "O Mundo Mágico dos Trapalhões" (1 milhão e 800 mil espectadores), "Jango" (1 milhão de espectadores) e "Anos JK" (800 mil espectadores).
Durante sua recente visita à cidade para abrir o FriCine - Festival Internacional de Cinema Sociambiental de Nova Friburgo, no último dia 14, aceitou o convite para bater um papo com a equipe de A VOZ DA SERRA sobre arte, cultura, censura, resistência, Brasil.
Para começo de conversa, comparamos o Brasil de 50 anos atrás, com repressão e censura, com esse conturbado momento atual em que temos a sensação do surgimento de uma nação cujos poderes vêm se misturando de forma pertubadora. Que panorama é esse?
“Depois do golpe de 1964, eu percebi que o primeiro grupo de pessoas a reagir, foi o dos artistas. Eles foram os primeiros a resistir à ditadura: o pessoal do Teatro Opinião, mais o Vianninha (autor teatral e ator Oduvaldo Vianna Filho), Zé Celso (Martinez Corrêa, Teatro Oficina, SP), Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Amir Haddad, Sérgio Cabral (pai), Stanislau Ponte Preta (jornalista Sérgio Porto). E eu quis ser igual a eles”, Tendler vai lembrando. Ao se dar conta dessa afinidade, ainda aos 14, 15 anos, decidiu: “Vou seguir a trilha desses caras, porque senti firmeza. E fui atrás. E tô nessa até hoje”, diz, sorrindo.
A caminhada dos resistentes
Aos 18, naquele 1968 de triste memória, Tendler deu início à sua carreira, que completa inacreditáveis cinco décadas, ano que vem. Naquele tempo aparentemente tão longínquo - que em momentos como esses de agora -, nos parece tão próximo, um jovem inquieto e curioso começou a tarefa de sua vida: resgatar, através de pesquisas, entrevistas, estudos, documentos, a memória brasileira. Assim seguiu e segue, escrevendo e filmando, inspirando alunos e levando espectadores à reflexão sobre os rumos do Brasil, da América do Sul, do mundo em desenvolvimento. Não parou mais, nem mesmo a tetraplegia que o atingiu há cerca de seis anos foi capaz de tirá-lo do front.
“Hoje, vemos parte daquela turma de 67/68 resistindo e fazendo arte, como antes, com a mesma coragem, determinação. O Amir Haddad, o Zé Celso, e muitos outros, enfim, quem não morreu, está ativo e forte, aos 70, 80, quase 90 anos de idade, como Fernanda Montenegro. A arte muda o mundo e é fundamental que a gente continue atento, se posicionando, falando, sacolejando, evitando que as pessoas, de modo geral, principalmente, a juventude, se entendiem com a mesmice”, alerta.
Neste ponto enveredamos pela questão preocupante da volta da censura, repressão, perseguição, engendrada por uma parcela considerável da sociedade brasileira.
Censura é atraso
Tendler lembra que a história da humanidade começou com dois personagens mitológicos, o casal nu no paraíso. “O nu está no princípio de tudo. Se formos nos cortes históricos da expressão artística, encontraremos grandes representações da arte retratando nus, como o Davi (Michelangelo) e outras obras-primas de grandes nus históricos, em museus e espaços públicos por toda a Europa e Estados Unidos. Turistas do mundo inteiro visitam exposições de pinturas e esculturas produzidas há 500 anos. Nus, inclusive. Então, como aceitar que quem quer que seja decida que nu não é arte e se ache no direito de proibir as pessoas de apreciarem determinada obra ou performance, em museus ou teatros? Isso é um retrocesso inaceitável”, argumenta, lembrando que durante o período que passou internado num hospital, cansou de ver, na TV, nus, com ‘forçação de barra’, beirando o obsceno, dia e noite. E ninguém atacou ou reclamou.
Recentemente, alunos exigiram que Tendler (professor da PUC-Rio) passasse um documentário sobre pornografia, uma série que está sendo exibida na televisão. “Depois de assistirem ao primeiro episódio, perguntei o motivo de tal interesse, o que essa geração vê e pensa de sexo. As meninas falaram: ‘Ninguém, hoje, vai ver a primeira cena de sexo só aos 18 anos, porque já viu aos 8 anos, pela televisão’. Portanto, está tudo aí, em programas de auditório, novelas, filmes, a qualquer hora, na rua, na praia, nas praças. Por que, então, não falar disso nas universidades? Quer dizer, foram meus alunos, jovens, que me propuseram a ideia desse debate dentro da sala de aula. Eles me obrigaram a deixar a minha praia, que é o cinema histórico, para abordar um tema como pornografia no cinema. Quer saber? Aprendo muito mais do que ensino. Essa convivência é fundamental, essa troca me enriquece, e deixa ainda mais claro o quanto a censura é um atraso, sempre”, arremata.
Assim como em seus documentários, que não depende de roteiro, set, equipe, o diretor trabalha com seus personagens, de forma direta, próxima, ouvindo histórias de vidas. É um papo reto, como se diz, em bom português. “Documentar é fazer história, é registrar para a posteridade, é botar o seu ponto de vista, se expor expondo ideias, situações, períodos, o país, seu povo, o momento. Fica guardado, memorizado. É real, não é ficção.
“Sento de um lado, o entrevistado de outro, uma câmera no meio, começamos a conversar, o papo vai rolando, as histórias surgindo, revelações, lembranças revividas. Fazer documentários é um eterno aprendizado, sempre descobrindo coisas novas. Uma entrevista igualmente produtiva para os dois, para quem mais estiver envolvido. É muito gratificante”.
FriCine
“Eu sou um entusiasta do trabalho do Pedro Cavalcanti (produtor de cinema e idealizador do FriCine) e da Ana (Hollanda Cavalcanti, produtora e também responsável pelo evento), um casal totalmente comprometido com as causas que abraçaram, como o meio ambiente, o cinema, seus ideais. São duas pessoas muito queridas e que fazem esse trabalho com muita garra e despreendimento. Aliás, eles têm uma história de vida em comum que daria um belo documentário (comenta, rindo para Leo Anturius, seu ex-aluno e nosso produtor e diretor de vídeo). No que depender de mim, sempre que eles me convidarem, virei a Friburgo com o maior prazer. Adoro a cidade, o hotel, o evento”, encerrou.
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