Com a chegada do final do ano, nossas representações socias mudam um pouco, em razão das festividades e encontros familiares. Mudança essa que atinge seu ponto máximo na ceia de natal. Eu, por exemplo, deixo de ser o neto de fulana que trabalha na televisão, para ser o primo de ciclana que leva a torta doce. Não que isso seja uma coisa monótona, muito pelo contrário, tenho toda a liberdade do mundo para escolher entre a cheesecake e a torta alemã.
Existe até um espaço na mesa esperando pela minha torta, que serve como uma lembrança de que, estão todos contando comigo para comer torta. Uma cobrança subtendida, um acordo de cavaleiros, ou, até mesmo, uma ameaça velada. Sim, porque se eu não aparecer na ceia com aquela torta, melhor sumir da cidade por uns tempos.
É assim com todo mundo, a ceia conta com a responsabilidade de cada um, e na noite do dia 24, não existe dever cívico maior. Chegamos, olhamos a mesa, e, se não tiver pastel, por exemplo, perguntamos: Sandra ainda não chegou? Assim como aquele espaço vazio no canto direito superior da mesa, reservado ao peru, que, se vazio, equivale a minha tia explicando a todos que a filha só vai chegar mais tarde, porque passou primeiro na casa da mãe do namorado.
A bebida é levada quase que exclusivamente pelos homens, mas consumida na mesma proporção pelas mulheres. Uma explicação para o fato seria o peso das caixas de bebida e a outra seria a possibilidade de fugir dos afazeres domésticos, várias vezes ao dia, para comprar mais bebida. Porque, como na casa de toda família que eu conheço, a comida sempre sobra e a bebida sempre acaba.
Existe também uma rivalidade, que tem origem na tenra infância, entre minha mãe e sua irmã, minha tia; na disputa pela melhor carne da noite. Quem ganha com isso somos nós, com pratos cada vez melhores, em troca de interrogatórios do tipo: Já experimentou? Está gostoso? Não vai comer mais? Nessa disputa, vence aquela cujo prato preparado acabar primeiro ou receber mais elogios. Ano passado o peru à Califórnia da minha tia perdeu para o lombinho com geléia de damasco da minha mãe. Mas titia, já deixou bem claro que, esse ano, o pernil vai ter sabor de vingança.
E, como em toda festa, estão lá os mais condimentados e flambados, dançando benbendo e cantando, e os grelhadinhos e de forno, sentados discretamente, conversando, sem nenhum aditivo. O tio do vinho coloca uma música “do seu tempo” e se acaba em passos constrangedores e divertidíssimos com a tia da caipirinha de maracujá, enquanto a prima da empada de palmito ensina um cházinho para cólicas do bêbe, para outra prima do salpicão de tender e arroz de forno.
E tem sempre aquela pessoa com quem não temos assunto, não compartilhamos nenhum outro dia do ano, e esquecemos até o grau de parentesco, devido a falta de afinidade. Assim, desconhecemos também qual prato o sujeito trouxe para a ceia. Sempre atribuo a ele a rabana melada que ninguém tocou, ou o panetone, ignorado em sua secura diante de aperitivos tão suculentos.
Especialmente nessas datas, nossa relação tem sabor, e cada um está presente com seu afeto e seu tempero, contribuindo com o que pode ser e fazer de melhor, compondo uma receita que revela diferenças, mas principalmente o desejo de unidade. Porque a expectativa do prato que se leva, é também a do sabor da presença daquele que o traz, a satisfação de uma mesa repleta de gente que ama estar ali junta, e apesar do buffet exagerado em quantidade, tudo é indispensável, peculiar e de valor inestimável, que fica ainda melhor se for acompanhado da farofa da vovó.
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