Rua Portugal: um espaço mais do que democrático

segunda-feira, 12 de outubro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Hoje a Rua Portugal acorda cedo. Não chega a madrugar, mas as atividades raiam com o sol; as lojas começam a levantar suas portas pouco depois das lanchonetes e restaurantes que, por sua vez, se abrem depois da padaria, localizada no fim da rua. Constantemente associada a farras, a Rua Portugal é vítima constante de reclamações, principalmente dos moradores, que se sentem incomodados com os frequentadores noturnos desta curta travessa localizada no centro da cidade e conhecido point da juventude friburguense. Hoje, no entanto, pode-se afirmar que a Portugal dorme. Ainda que mais tarde do que alguns gostariam.

A Rua Portugal é o espaço onde os perdidos, os sujos, os diferentes, os outsiders se encontram, se sentem em casa. Muitas vezes é lá que descobrem um lar – processo que pode ser verificado principalmente entre os mais jovens, afoitos para se integrar a algum grupo. Tarefa inglória, encontrar um lugar na sociedade torna-se ainda mais estafante para o indivíduo de gostos peculiares, incapaz de se juntar aos grupos comumente aceitos, só lhe restando, portanto, o underground, onde, então, podem se sentir à vontade, afinal de contas.

Assiduidade além do copo

A frequência noturna, então, é o que dá o tom da Portugal. E motiva a maioria das reclamações. Alguns, praticamente habitantes da rua, não conseguem desvincular as memórias deste espaço, cujo fascínio só pode ser explicado diante da sensação de isolamento que propicia. Uma das únicas vias de pedestres no centro da cidade e também uma das únicas que não dão acesso à Avenida Comte Bittencourt, terminando na Rua José Eugenio Müller, o que confere a seus frequentadores uma certa sensação de segurança.

Segurança essa que, é claro, também deixa espaço para indivíduos que aparentam uma moral, digamos, questionável, do ponto de vista da grande maioria das pessoas. Uma das grandes reclamações que a rua recebe está vinculada ao tráfico de drogas. Segundo alguns, isso aconteceria às vistas claras e não é de se estranhar que este comércio esteja intimamente ligado à Rua Portugal e seus frequentadores. Extraoficialmente, o que se sabe é que a pequena rede de tráfico existente no centro da cidade não se localiza na Rua Portugal, mas bem perto dali, na Praça Getúlio Vargas.

Os moradores, principalmente os mais velhos, sentem-se legitimamente ofendidos com a movimentação da Portugal. “É um inferno para quem mora nessa rua. Os comerciantes não estão cumprindo o que a Prefeitura determinou, e voltaram a colocar mesas na calçada depois das 18h. Nós, moradores, é que sofremos com as brigas, a venda de drogas e adolescentes alcoolizados até as três, quatro horas da madrugada”, relata Lucia Lima, em e-mail enviado à redação de A VOZ DA SERRA.

Por outro lado, Paulo Macedo, que frequenta a Portugal há 30 anos, lembra que a rua tem muita história. “Não é de ontem que reclamam disso aqui. No carnaval, quando a rua não era fechada, a confusão era maior ainda. A rua ficava que era um mar de latas. Uma visão impressionante. Na época, as latinhas de cerveja não eram de alumínio e, portanto, não eram recolhidas pelos catadores, ficavam por lá”, lembra Paulo, afirmando que perto do que se via no passado, os moradores de hoje não têm muito do que reclamar. “Isso aqui já teve onze bares”, lembra, enquanto faz um brinde dentro de um dos dois únicos bares que restaram na rua.

Outro problema associado à rua é a questão das mesas nas calçadas. Chegou perto de uma solução radical no princípio do ano, quando o Departamento de Posturas, seguindo determinações do Código de Postura Municipal (Deliberação nº 918, datado de 30 de maio de 1969), retirou as mesas das calçadas de todos os estabelecimentos no centro da cidade. A decisão, porém, não vingou. Assim, os estabelecimentos e os fregueses voltaram a poder continuar se sentando nas meses colocadas no passeio, até que a Prefeitura elaborasse um projeto para padronizar a questão.

Em meados de agosto, uma nova varredura impôs a retirada das mesas da Portugal. Desta vez, por conta de uma ação do Ministério Público, fruto de uma iniciativa de alguns moradores e que só envolveu esta rua. Os dois bares e a pizzaria no início da rua viram sua freguesia diminuir consideravelmente, mas a situação logo se normalizou e as mesas retornaram a seus lugares de costume. Como sempre, os moradores com carro continuaram a passar livremente, tendo apenas de pedir licença às pessoas que tomam conta da rua nos finais de semana. Mas, é claro, as reclamações continuaram.

Ponto de encontro de todas as tribos

Ele frequenta a Portugal há mais tempo do que a maioria. Segundo seu próprio testemunho, desde a infância, que, ao que parece, está bem distante. Beirando os sessenta anos, Tetéu chega na rua um pouco antes do pôr do sol. Quando não aparece, todos estranham. Ele chega devagar, como quem não quer nada, logo engata numa conversa e quando menos se vê, já está sentado, guiando a prosa. E bebendo.

Querido por todos, é notório que Tetéu é a única pessoa com passe livre em todas as mesas da rua. Figura mítica da Portugal, é bastante respeitado, suas histórias e lendas ecoam pelas diferentes gerações que aparecem por lá. Conhece todo mundo, nem sempre pelos nomes, mas é batata. Se ele for com a sua cara, as histórias vão sair, algumas até padecendo de um senso de humor politicamente incorreto, mas sempre muito divertidas. Seu nome verdadeiro circula amiúde, algumas vezes dito apenas na intenção de irritá-lo, o que raramente é conseguido. “Tetéu devia ganhar uma estátua na Portugal”, dizem, em tom de brincadeira. Até que não seria mal.

Mas Tetéu não é a única presença a figurar constantemente na Rua Portugal. Principalmente depois de ser fechada, em 86, para se tornar, vejam só, uma rua de lazer, a Portugal conta com muitos frequentadores assíduos. É gente que escolheu o lugar como ponto de encontro, como base, sede para diferentes clubinhos, alguns mais discretos que outros, reunindo-se, dia após dia, regados a cerveja e conversas muito particulares.

Uma antiga comunidade do Orkut, Eu odeio os roqueiros da praça, faz referência a uma série de personagens que circulam pela Portugal. Algumas, histórias impublicáveis, outras, lendas urbanas que tiveram o azar de se materializar em indivíduos jovens que, muitas vezes, não querem o peso dos próprios atos.

Basta conferir a rua nos finais de semana. Os jovens reunidos, muitas vezes escondendo uma garrafa de vinho barato, ou até expondo garrafas batizadas de refrigerante, divertindo-se, às vezes entrando em conflitos com outros grupos. É uma forma de sobreviver à adolescência, fase da vida pela qual alguns nunca cessam de passar, de juntar-se a um grupo, de cometer uma ou outra estupidez e, quando apanhados, defender-se até o limite. Ou jogar a culpa nos outros.

Falta de soluções

Numa análise mais profunda, nota-se que não existe – nem poderia existir – um caminho fácil de entendimento entre os moradores que reclamam do barulho e os frequentadores da rua. Os primeiros, cansados da confusão, têm razão de reclamar. São anos e anos de tumultos e motivos de sobra para se sentir incomodados e inseguros.

Já do ponto de vista dos frequentadores, principalmente os mais assíduos, o barulho não é tão grande quanto se diz e, mesmo se fosse, todos já deveriam estar acostumados. Afinal, a Portugal já é assim há muito tempo. E ainda há um terceiro grupo, formado por pessoas que vivem na Portugal e não só não se incomodam com o barulho de suas noites como ainda participam dele.

A Rua Portugal é um domínio onde diferentes valores estéticos e culturais se cruzam, quase sempre temperados com gostos musicais peculiares, comportamentos fora dos padrões e ambições artísticas difíceis de concretizar, mas aí mesmo é que reside a sua beleza. Ambientes culturalmente ambíguos como a Lapa, apenas para ficar em um exemplo mais gritante de espaços urbanos divididos por diferentes tribos, costumam gerar manifestações artístico-culturais as mais variadas e impressionantes. A Rua Portugal fervilha de uma intensidade produtiva, basta que lhe seja dada alguma oportunidade, antes que os bares fechem de vez e os motivos para as reclamações se tornem ainda piores.

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