Ana Borges
Sábado passado, dia 21, o Brasil perdeu Rose Marie Muraro, uma intelectual, escritora e feminista brasileira, dona de uma personalidade onde força e coragem foram determinantes para que se tornasse uma das mais brilhantes intelectuais de nosso tempo. Autora de mais de 40 livros, foi responsável pelo lançamento de cerca de 1.600 títulos, nas editoras Record e Vozes. Suas obras tratavam de temas polêmicos. Eram contestadores e inovadores dos valores sociais modernos. Nos anos 70, foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil. Nos anos 80, quando a Igreja adotou uma postura mais conservadora, passou a ser perseguida pelos ideais que defendia. Naturalmente intensa, sua trajetória foi marcada pelo exercício constante de uma mente libertária, que abriu mão da fortuna da família para "ajudar a construir um mundo novo”.
No ano de 2000, o Colégio Nossa Senhora das Dores promoveu uma série de palestras com ilustres convidados, em seu então auditório, hoje Teatro Sania Cosmelli. Um desses convidados foi Rose Marie Muraro. O escritor e dramaturgo Alcione Araújo (morto em 2012, aos 67 anos), também convidado, assim a descreveu: "Rose é um ícone para as mulheres brasileiras. Impulsiva no limiar do agressivo. Irreverente à beira do escândalo. Corajosa, desafia instituições, afronta papas, bispos e padres. Temerária, enfrenta os militares. Avançada, amou de todos os amores. Iconoclasta, seria uma anarquista, não fosse a ardente fé no seu Deus: o orgulho pela profissão de editora e o infinito amor pelos filhos. Rose, impossível não ser uma mulher”.
Na edição do Light de 9 de setembro de 2000, fiz uma reportagem sobre meu encontro com ela e sobre sua palestra, numa noite de auditório lotado. Como bem disse Marta Suplicy, "Rose é um furacão. Não há encontro com ela do qual não se saia com a cabeça tumultuada”. E foi assim, com a cabeça tumultuada, fervendo com tantas ideias, questionamentos e rico material para análises profundas, que o público se despediu daquela mulher admirável. E eu tive o privilégio de reportar aquele momento, há 14 anos. Com a morte de Rose, semana passada, lembrei da forte impressão que sua presença me causou, dos sentimentos que me despertou, que permanecem, indeléveis, em mim.
Hoje, mais de uma década depois, me senti impelida a lhe prestar uma última homenagem, através da republicação de alguns trechos da referida matéria. Pois, em se tratando de Rose Marie Muraro, sempre vale a pena relembrar o que disse, refletir sobre suas ideias. Elas jamais envelhecem.
Sobre construir um mundo novo: "Eu não queria levar uma vida de luta pelo poder e dinheiro, que nortearam meus pais e meus tios. Meu pai morreu de enfarto aos 45 anos de idade, meu avô e tios também. Vivi apavorada por esse tipo de luta, e no túmulo deles, jurei que nunca ia ganhar dinheiro na vida. Belo juramento (risos). Mas a verdade é que o poder esvazia a alma humana. E o amor tira o poder e bota vida dentro de você. E entre o poder e a vida, eu fico com a vida. A partir disso, decidi que não queria aquela vida, mas ajudar a construir um mundo novo”.
Sobre Deus na sua vida e sua entrada na Ação Católica: "Pouco antes da morte do meu pai, eu estava com uns 14 anos, entrei para a Ação Católica. Foi então que conheci um padre, magrinho, que muito mais tarde, quando eu estava dando aulas numa universidade na Filadélfia, vim a perceber que ele poderia vir a ser tão grande, ou maior que Mahatma Ghandi, um dos maiores santos do século 20: era D. Hélder Câmara. Ele foi a pessoa que deu o primeiro passo para criar esse mundo novo que eu buscava, ao romper a aliança da ‘grande Igreja Católica’, com dois mil anos de história com a classe dominante, com os poderosos. Mostrou ainda que era possível pôr essa igreja ao lado dos pobres. Deus apareceu na minha vida, não mais abstrato e piegas como no colégio de freiras onde eu estudava, mas Vivo, um Deus Pulsante. Minha vida mudou para sempre. Soube o que era mergulhar na compaixão de Deus. Então, foi uma coisa assim meio milagrosa, eu ter conhecido este homem logo após a morte do meu pai. Desde esse tempo, 1946, até hoje, estou trilhando o mesmo caminho”.
Sobre a ditadura no Brasil: "Nos anos 60, a gente passou por uma fase de catacumba, uma fase de germinação e de grande sofrimento. Eu perdi vários amigos na tortura. Em 68, na greve e passeata na Avenida Rio Branco, morreu o estudante Edson Luís. Estavam lá a UNE, a JUC (Juventude Universitária Católica), o presidente Fernando Henrique Cardoso, naquela época era um cara de esquerda, que hoje não é mais, que conheci na época..., e hoje, de triste memória. Viviam me convidando para entrar na guerrilha, mas eu era mãe, com quatro filhos pequeninos, e não ia me meter em ‘furada’. Eu tinha me formado em Física e dizia que eles estavam lutando, de pés descalços, contra a bomba atômica. Eu dizia, ‘não adianta vocês enfrentarem de peito aberto o pessoal que está sendo financiado pelos movimentos internacionais’. De fato, em 13 de dezembro de 1969, o AI-5 põe todo o nosso trabalho debaixo da mais terrível repressão”.
Sobre a ida para a Editora Vozes: "Em 1965, o diretor da Vozes, um padre de direita, me convidou para trabalhar com ele. A editora, portanto, era uma instituição de direita, mas eu, para não perder o espaço que já tinha conquistado, levei toda a produção da igreja progressista para lá. Vendemos tanto que a Vozes saiu da falência para se tornar a segunda editora do Brasil. Por quê? Porque simplesmente tinha uma quantidade enorme e silenciosa de leitores, que eram as comunidades de base, que não tinham perdido a ideologia de D. Hélder, de viver a pobreza e de construir um mundo novo, a partir do oprimido”.
Sobre a Teologia da Libertação e o movimento feminista: "Em 1970, chega da Europa, para trabalhar na Vozes, um jovem padre brilhante, que tinha acabado de fazer o seu curso de Teologia na Alemanha. Assim que chegou, eu o mandei para trabalhar na favela. Disse-lhe para me falar dali a seis meses. Acabado esse prazo, ele voltou trazendo um livrinho elaborado por ele, chamado Jesus Cristo, libertador. Foi quando descobri que aquele rapaz era um gênio. Seu nome era Leonardo Boff. A partir daí, nunca mais ninguém conseguiu me controlar, em lugar nenhum, nem os militares. Formamos uma dupla, eu com os livros leigos, e o Boff, com os religiosos. Nasceu, então, ao mesmo tempo, a Teologia da Libertação e o Movimento Feminista no Brasil”.
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