A arquiteta friburguense Viviane Mastrângelo passou cerca de sete meses - de setembro a março - em Bangui, capital da República Centro-Africana (RCA), a serviço da Ong Médicos Sem Fronteiras. Seus relatos sobre o dia a dia na comunidade, entre moradores e colegas, além do estresse provocado por ameaça de ataques terroristas, são reveladores da realidade daquele país que foi colônia da França até 1960.
Viviane desembarcou em Bangui e de lá seguiu para uma pequena cidade, chamada Bangassou, seu destino final. Instalada, escreveu: “A vinda de Bangui para cá foi incrível. Fiquei meio preocupada por viajar num avião de pequeno porte, mas a vista lá de cima compensou qualquer medo. A floresta equatorial é linda!”
Em terra firme, as primeiras impressões: “Bangassou é uma típica cidadezinha do interior, com ruas de terra e construções como em algumas cidadezinhas do interior do Brasil. Nos bairros, as casas têm o estilo típico local, com tijolos de barro aparentes e tetos cobertos de palhas”.
Segundo ela, o país não tem um sistema de saúde gratuito. A administração do Hospital Regional ficava a cargo da Conges, uma espécie de cooperativa médica. Ao chegar à cidade, a MSF se uniu à Conges e juntos passaram a gerir o hospital permitindo o acesso gratuito ao sistema de saúde.
“Compreensivelmente, as clínicas ou hospitais com os quais a MSF passa a trabalhar, apresentam um crescimento desproporcional de pacientes em relação à sua capacidade de atendimento. Então, a ideia é melhorar a estrutura existente, expandindo o número de leitos e criando novos departamentos para permitir que o hospital funcione como um ponto de referência regional. É aí que eu entro”, registrou Viviane na época.
No seu primeiro dia de trabalho, um colega francês, responsável pela logística do hospital, a guiou pelo enorme terreno onde ficavam os prédios separados por estreitas passagens. O lugar parece uma cidadezinha. Mas o que tornou essa visita especial foi o carinho das pessoas. Conforme caminhava pelos corredores, os funcionários me cumprimentavam com um aperto de mão dizendo seus nomes e me dando boas-vindas”.
Viviane ouvia agradecimentos pela expansão do prédio como se ela fosse a responsável pelo projeto. Pacientes e familiares a cumprimentavam com um aceno de mão ou um salut ou bonjour. “É gostoso receber todo esse carinho, mas ao mesmo tempo aumenta o peso da responsabilidade. Me dou conta, então, o quanto esse trabalho será importante para eles e pra mim, também. Dá um frio na barriga!... Nessas horas é bom pensar: um dia de cada vez”.
De volta para ‘casa’: momentos de tensão
“Um mês se passou desde que, no dia 14 de outubro, nossa base, ou seja, nossa casa, foi invadida. Saímos de Bangassou. Difícil explicar como me senti ao entrar no avião deixando tudo para trás, sem saber se voltaria ou não. Desolador despedir-se de pessoas com quem você convive todos os dias e deixar os projetos suspensos sem nenhuma certeza do que vai acontecer. Apesar desse viés negativo, a experiência teve consequências positivas.
“Nesse período, fomos a Camarões para uma curta estadia pós-estresse e depois ficamos três semanas trabalhando na sede da MSF em Bruxelas. A temporada na Bélgica me ajudou a entender como funciona a estrutura da Ong, onde são tomadas as decisões, além de poder trabalhar diretamente com as pessoas com quem me comunicava quase diariamente.
“Finalmente o projeto foi retomado e voltei para ‘casa’. Rever a cidade, as pessoas, detalhes como as margens do rio e até minha cadeira na varanda me trouxeram conforto e ajudaram a equilibrar a apreensão de voltar ao lugar que me marcou tão negativamente. Parte da equipe já estava no fim do período previsto para permanência no projeto, outros optaram por não voltar. Então, nova equipe, novos amigos, mas, felizmente, a mesma Bangassou.”
A lição dos ventos dominantes da África
“O desafio da vez é lembrar as aulas sobre estruturas de madeira, dosagens de concreto, sistemas de drenagem... Não atuava nessas áreas nos escritórios em que trabalhei no Brasil. Aqui, os projetistas contam com o apoio de técnicos na capital do país ou no escritório central. No meu caso, dei sorte de ter um construtor por perto, com anos de experiência para me auxiliar.
“Mesmo assim a gente ainda comete gafes. Estava desenhando o prédio novo para tratamento de tuberculose, cujos pacientes devem ficar isolados, quando os técnicos me alertaram para confirmar a direção do ‘vento dominante’, antes de locar o prédio, pois o vento deveria passar na transversal e no sentido da cabeça para os pés dos internos. Além disso, a ventilação não deveria ir de um doente para outro. Mas, no hospital, ninguém soube me dar essa informação e o pessoal da obra só sabia de onde vinha o vento da chuva, que é diferente do vento do dia a dia.
“Aproveitei que o vento estava fraquinho, peguei um pedaço de madeira, prendi um fio de cabelo e fiquei observando. Estava me sentindo o inspetor bugiganga com minha incrível ferramenta. Pronto, descobri a direção do vento. Certo? Errado! O vento dominante não é o vento de um dia. Precisa ter a média de um período maior, medido ao longo do dia, por dias seguidos. Ainda bem que me dei conta disso antes de comentar com alguém! De volta ao escritório, pesquisei os mapas de ventos dominantes da África e como só encontrei as previsões de vento, e não um histórico, entrei em contato com o escritório central.
“Moral da história: por mais que eu queira fazer as coisas sozinha preciso ser humilde para reconhecer minhas limitações”.
Entrevista com Viviane Mastrângelo
A VOZ DA SERRA: Como você descobriu Médicos Sem Fronteiras?
Viviane Mastrângelo: Há algum tempo assisti um seriado americano sobre Médicos Sem Fronteiras e achei uma coisa incrível. Mas pensei que era só para profissionais da área de saúde, principalmente médicos, e por isso deixei a ideia de lado. Durante a faculdade, soube por uma amiga que eles também aceitavam arquitetos, mas deviam ter experiência profissional. Em 2011, voltei a ouvir falar da ONG quando deram suporte psicológico após as enchentes na região serrana. Acho que esse conjunto de informações foi se acumulando e em dado momento tomei coragem para mudar tudo e ir trabalhar com eles.
Neste retorno, qual será sua função?
Vou auxiliar na gestão de um hospital no campo de refugiados de Mpoko, em Bangui. Dessa vez não vou trabalhar especificamente como arquiteta. Participei de uma formação dada pelos MSF, em Bruxelas, e depois disso pedi uma função mais geral para ter um conhecimento transversal do trabalho. Acho que trabalhar em outros setores vai me ajudar a entender melhor como funcionam as estruturas de saúde e quais os seus desafios, e assim desenvolver projetos de arquitetura melhores no futuro. Estou indo hoje (dia 2 junho) e volto em dezembro.
Que expectativas você tem quanto à sua contribuição para estas comunidades?
Trabalhando como arquiteta no departamento de logística, a minha função é muito clara: dar suporte às equipes médicas para que elas possam prestar o melhor atendimento possível aos pacientes. Fui para Bangassou para auxiliar no desenvolvimento do projeto de arquitetura de construção e expansão do hospital regional cujo objetivo final é melhorar a qualidade da estrutura disponível. Mas, é claro que um projeto como esse traz uma série de consequências positivas indiretas, como geração de empregos e formação de mão-de-obra. Eu tentei ao máximo passar o conhecimento técnico que tenho, mas posso dizer que aprendi tanto quanto ensinei. É uma troca muito positiva.
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