Relatos de quem sobreviveu à tragédia

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
por Jornal A Voz da Serra
Relatos de quem sobreviveu à tragédia
Relatos de quem sobreviveu à tragédia

“Nossa vida agora é assim:

estado de atenção,

estado de alerta,

estado de abandono...”

Certamente o bairro de Duas Pedras foi um dos mais devastados no 12 de janeiro. Além de diversas mortes, muitos moradores sofreram danos significativos e tiveram que deixar suas residências. E uma dessas pessoas, que sentiu na pele os reflexos da catástrofe e luta até hoje para retomar a normalidade de sua vida, é o empresário Welber Hottz, proprietário da Gráfica WH. “Como a maior parte dos habitantes de Nova Friburgo, sofri com os efeitos devastadores das chuvas e das inundações. Tenho prejuízos em minha residência e na minha empresa provocados pelos alagamentos e pela falta de energia, água, telefone e, principalmente, internet”, afirma Welber.

Ele comenta que, inicialmente, pensava que o maior problema tinha sido ver naquela fatídica madrugada o desespero de pessoas com a perda de seus bens e até mesmo de vidas. Entretanto, o empresário acredita que o principal pesadelo foi o descaso das autoridades. “A causa maior de tudo não foi um fenômeno isolado da natureza ou de sua degradação constante, mas o descaso e a falta de planejamento por parte das autoridades, que se entregaram aos seus interesses políticos e nos jogaram ao seu desgoverno histórico. Isso sem falar na corrupção já documentada pela imprensa. Foi a maior tragédia moral da nossa história”, ressalta.

Um ano após a catástrofe, ele ressalta que muito ainda precisa ser feito. “O pesadelo é recorrente. Depois dessas chuvas, a ajuda não veio a quem mais precisava, as obras de infraestrutura não aconteceram na totalidade, os financiamentos não chegaram a quem realmente precisava se reerguer”, diz, para em seguida completar: “A nossa vida em Nova Friburgo agora é assim: estado de atenção, estado de alerta, estado de abandono...”.

“A sensação de voltar para casa

e não vê-la mais é algo horrível”

“Graças a Deus sou uma mulher de muita fé e estou contando com a ajuda da minha família e dos meus amigos para superar a dor e lutar contra o descaso das autoridades.” É o que declara Célia Regina Mesquita Lo-Bianco, um ano após perder seu marido e sua casa, que ficava na esquina das ruas Cristina Ziede e Miranda Fortes. Moradora há dez anos do local, ela escapou da tragédia porque havia ido a um aniversário e não pôde sair devido à enchente que alagou as ruas do Centro ainda no fim da noite do dia 11. Só quando as águas baixaram ela conseguiu passar. “A sensação de voltar para casa e não vê-la mais é algo horrível”, resume Célia.

Além de guardar na memória essa terrível sensação, Célia vem convivendo com a tristeza e a indignação. “Está sendo muito difícil. O que mais incomoda é estarmos nessa situação e ver o descaso das autoridades. Isso magoa muito. Perdi meu marido, minha casa e fica tudo por isso mesmo. Ninguém me procurou para dar qualquer satisfação”, desabafa ela, que atualmente reside na Avenida Alberto Braune, num apartamento que divide com a cunhada.

Apesar de continuar morando no Centro, Célia se queixa que até hoje não conseguiu receber o aluguel social, sob a alegação de que residia em área nobre e não precisaria do benefício. “A partir do momento que você perde tudo, não cabe esse tipo de julgamento. Se o aluguel social é para quem perdeu a casa na catástrofe, por que eu não tenho direito a receber?”, questiona ela, que continua aguardando o benefício.

Outra questão que aflige Célia é a incerteza sobre o que será feito com os terrenos das casas que desabaram na Cristina Ziede e adjacências. “Tem uma firma lá trabalhando, mas não sabemos de nada. Deveriam fazer uma reunião com os moradores para nos colocarem a par do que está sendo feito. Até agora não podemos cercar o nosso terreno e fica tudo por isso mesmo”, protesta Célia.

Em meio ao descaso e à tristeza, Célia ainda encontra forças para tentar recuperar seu patrimônio e cobrar providências das autoridades. “Vou lutar por aquilo que é meu. Quero recomeçar e, para isso, preciso de atenção e esclarecimentos das autoridades sobre o que está acontecendo”, pontua.

“A minha casa está lá, marcada para ser demolida. As pedras que rolaram estão lá na rua até hoje, nada foi feito”

“Eu morava no Três Irmãos e na tragédia do dia 12 uma barreira caiu próxima da minha casa. Atingiu as casas do lado, na minha só entrou muita lama, fazendo com que eu perdesse tudo que eu tinha na varanda e alguns móveis. Meu carro foi soterrado e a moto do meu marido também.

Na verdade, essa barreira era uma pedreira com mata por cima e várias pedras rolaram, prédios e casas foram destruídos. A minha casa foi interditada pela Defesa Civil, está lá, marcada para ser demolida. As pedras que rolaram estão lá na rua até hoje, nada foi feito.

Foi um momento muito difícil. Era uma casa própria, uma casa muito boa na qual eu morava há 15 anos e ver o que aconteceu foi muito triste. Hoje eu moro de aluguel. Cheguei a dar entrada no aluguel social, fiz cadastros, recadastramento e nunca obtive resposta do governo. Eu nunca tinha pagado aluguel na minha vida, aí imagina a situação? O meu salário era para despesas da casa e eu me vi tendo que arcar com um aluguel todo mês. No começo, durante seis meses quem pagou a minha moradia foi a empresa em que eu trabalho.

Atualmente estou morando num apartamento no Jardim Ouro Preto. Procurei várias casas, mas todas são muito ruins e resolvi me mudar para esse apartamento, apesar do aluguel ser bem mais caro. Eu procurei muito voltar a ter uma vida próxima do que eu tinha, apesar disso, reaproveitei os móveis e utensílios domésticos que deram para recuperar, coloquei no sol, sequei, fiz o que foi possível. Eu tenho dois filhos e precisava de um lugar melhor para morar. O que eu espero para este ano é que seja um ano tranquilo, eu estou bastante otimista.”

Fátima Mafort Queiroz Rodrigues

“Não esperávamos um final feliz, só ansiávamos para que o final chegasse, fosse qual fosse. Mas quando o dia amanheceu, nada ficou melhor”

Depois de morar 11 anos em Córrego Dantas, Laiane Tavares, 24 anos, teve que fugir com sua família para não morrer durante a tragédia no ano passado. O lugar, que sempre foi tranquilo, foi escolhido a dedo por sua mãe para criar os filhos. Ela morava numa rua alta e com pouquíssimas casas, rodeada por uma vizinhança agradável e cortês.

Quando começou a chover forte, a família ficou preocupada, apesar de não morar numa área considerada de risco. “Nos preocupamos por causa da queda de um prédio em Olaria, que chegou a passar no noticiário”, conta a jovem. O incômodo virou desespero quando a família acordou às 3h com a casa tremendo. “Não recebemos nenhum aviso da Defesa Civil, mas acho que ninguém recebeu”, relata.

Após acordarem com o susto, a família de Laiane saiu de casa. “Fomos correndo para a casa da minha irmã, que era perto, para ver se estava tudo bem. Os barulhos foram ficando cada vez mais constantes e saímos de lá. Vimos que a escada que levava à garagem havia rachado e toda a mata que ficava ao lado da nossa casa havia desaparecido. Chegamos até o carro e não conseguimos andar dez metros com ele, pois pedras gigantes estavam obstruindo a passagem. Tivemos que tirá-las uma por uma. Conseguimos passar, mas não havia como sair do Córrego Dantas. A estrada era um rio. Ficamos em um galpão no fim da rua, onde estavam outras famílias que moravam por perto. Não havia como sair”, descreveu.

A casa em que morou por mais de uma década continua no mesmo local e não foi completamente destruída. No entanto, toda a rua foi interditada e ninguém mais mora lá. “A parte mais fácil foi abandonar a casa, deixar tudo pra lá. Correr sem ver. Os prejuízos não foram poucos, não conseguimos recuperar tudo, mas só de estarmos todos vivos encaramos, no fim, como se o saldo fosse positivo, afinal, só isso importa”, pondera.

A madrugada foi longa e a espera excruciante. A incerteza deixou todos num pânico coletivo entorpecido durante a longa chuva, com a possibilidade de que tudo pudesse acabar a qualquer momento. “Diante de tanto desespero, não esperávamos um final feliz, só ansiávamos para que o final chegasse, fosse qual fosse”.

O dia seguinte também não foi fácil. As ruas tomadas pela lama e as casas que desapareceram deixavam o cenário com um aspecto surreal, como se nada realmente tivesse existido. Laiane conta que “quando finalmente o dia amanheceu, nada ficou melhor. As pessoas saíam de seus abrigos, tímidas, quase que com vergonha de terem sobrevivido diante de tamanha tragédia”.

A luta apenas estava começando. Agora, a família de Laiane mora em outro bairro, tentando reconstruir a vida que ficou soterrada no antigo lar.

Micilene Schuenck: em plena catástrofe, uma gravidez de risco, mas com final feliz

Como tantos friburguenses, Wanderson e Micilene Schuenck dormiam o sono dos justos quando ouviram um barulho muito forte e pessoas gritando. Não pensaram duas vezes: acordaram a filha de Wanderson e saíram correndo com a roupa do corpo. Só deu tempo de pegar o guarda-chuva que estava na varanda antes de metade do sobrado desabar.

À medida que desciam os degraus da casa onde moravam, no alto do Tingly, iam se deparando com aquele horror. Só para se ter uma ideia, todos os vizinhos próximos morreram. Só eles conseguiram sair a tempo. Detalhe: Micilene, ou Lene, estava grávida de quatro meses.

Ainda conseguiram ligar para a patroa de Lene e rumaram a pé para o Paissandu, debaixo de chuva, na escuridão, guiando-se pelos raios que cortavam o céu da cidade. Em muitos trechos tiveram que caminhar com água até a cintura, mas conseguiram chegar sãos e salvos a seu destino, apesar de muito afetados emocionalmente. Wanderson deixou a família em segurança e voltou, na mesma hora, ao Tingly, para ajudar os vizinhos. E ali ficou enquanto teve forças para tanto.

Pouco a pouco o casal foi ajeitando a vida. Como quase todo mundo que ficou sem ter onde morar, morou em vários lugares até conseguir se estabelecer numa simpática casinha em Mury. Fica longe do asfalto quase dois quilômetros, mas num local sem risco de enchentes e desabamentos. Graças à ajuda de amigos—“Como tem gente boa neste mundo”, diz Lene—conseguiram roupas, mobília, louça, enfim, aos poucos foram se reerguendo.

Sim, batalharam muito, enfrentaram horas de filas, mas acabaram conseguindo receber o aluguel social. Este dinheiro não resolve tudo, mas certamente vem ajudando e muito. Puderam comprar novamente os móveis do quarto do bebê, que ficou debaixo dos escombros, e completar o enxoval de Ana Beatriz, que nasceu linda e saudável alguns meses depois, alegrando a vida da família e trazendo um novo alento ao casal.

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