É de se esperar uma vida agradável no campo, principalmente a essa altura, em que agradável é sinônimo de arrastar-se pela grama, cada vez mais conhecida, grama minha, buscar o escapável pôr do sol, perder-me entre as raízes, conhecendo a grama de todo o quintal, observando-a crescer, bulbo por bulbo através dos buracos da terra que deforma minha forma já disforme, molda-me à resistência daqueles que sofreram e sofrem, faz de mim a santa que não sou aos olhos dos outros – pintam-me, imortalizam minha dor sem conhecê-la e pensam compreendê-la como quem compreende que o desejo que brota é infeliz porque se distancia do outro desejo de outrem que sentindo-se mal-amado, despeja cores numa tela até expurgar toda a maldição, espalhando-a (a dor) aos quatro ventos, torcendo para que se vá, se vá, enfim. E mal consegue distinguir-se da pintura, agora, perde-se calmamente, com uma falsa serenidade, outro desejo a explodir, toda a dor a se derramar – o não querer ó, o não amar, o se perder, cavando o que não se conhece, porque não está lá, não está lá, não é capaz de sujar as mãos de terra, não pode verificar sob as unhas e ver toda a história toda a casca, toda a maçã mordida – a maçã que contém todo o cosmos, vinda da árvore gêmea. Conhecimento e vida destacavam-se, proibidas no paraíso.
Arrasto-me sobre a grama, sem imaginar-me velha, apenas conhecendo o instante arrasto-me, conhecendo a grama que me deforma, que me forma, que me faz viva.
_______________________________
O texto apresentado aqui faz parte da Graphic Novel, a ser publicada brevemente, Pássaros Artificiais, escrita por mim e ilustrada por Antonio Eder.
Além disso, ele é baseado na pintura O Mundo de Christina, do americano Andrew Wyeth (1917-2009). Nela, o pintor retratou sua prima, Christina Olson, vítima de poliomielite, que tinha de se arrastar por todo o terreno em que vivia para colher os frutos de seu jardim. Tema de uma série de pinturas de Wyeth, Christina vivia em Cushing, Maine. Sua casa, que continua de pé, hoje é conhecida como a Casa de Olson.
Curiosamente, Wyeth não usou Christina como modelo para seu quadro, mas sim sua esposa, Betsy.
De meu texto só vale comentar a sensação de inevitabilidade e o descaramento do artista.
Deixe o seu comentário