Ana Blue
Um dia, como num passe de mágica, a gente percebe que não consegue mais pintar as unhas em casa. É simples. Aquelas farras de adolescentes se arrumando para ir ao cinema ou à praça acabam. As reuniões infindáveis para as massagens de cabelo na touca térmica deixam de acontecer. As meninas dourando pelo no quintal? As mães, sempre nervosas, reclamando dos pulsos do telefone? Os pais barganhando cada centímetro das bermudinhas? Esqueça. Esse quadro deixa de existir, tão sorrateiramente quanto começou a se pintar em nossas sociedades juvenis.
Sociedade, sim. Jovens têm seu próprio império e própria lei. São seus próprios algozes e seus próprios juízes. Não que isso seja ruim, longe disso. Apesar dos vínculos feudais entre pais e filhas, que recebiam creme rinse e Colorama em troca das pias arrumadas, uma autêntica e moderna relação entre serviço e gleba de terras, era entre outras da mesma espécie que a realidade se consolidava. Os desejos comuns, os governos e desgovernos, tudo experimentado em grupo, a fundo, com a sede e a avidez que só as meninas de 15 anos conhecem. Pais não penetravam neste reino. Irmãos mais velhos eram quase inimigos de guerra. E dá-lhe planos de estratégia comportamental discutidos ao telefone, para desespero das mães.
Aí começa a aporrinhação. Primeiro beijo, primeiro emprego, sutiã com bojo, menstruação. Primeiros amores eternos. Primeiras idas ao salão. O primeiro pincel de tintura a gente nunca esquece. O salto alto já não é mais roubado do armário nas brincadeiras: ele nos pertence agora. E machuca o pé, aperta, é um sacrifício pra pagar. Mas é impossível descrever o sentimento de liberdade que traz o primeiro salto alto. É como um país inteiro gritando a Independência às margens do Ipiranga.
Claro, pode ser também que a gente não passe por nada disso. Que use só tênis, que não use batom, que ignore completamente os decotes. Os processos ritualísticos não são decretos oficiais, não são portarias definitivas. E se a passagem para a vida adulta for feita sozinha, sem as reuniões de cúpula da sétima série? E se não houver primeiro beijo? E se o mestrado vier antes do salão? Talvez seja nessa diferença que resida a maior verdade feminina: o poder de ser única, mesmo entre tantas. De escrever sua própria história, mesmo que essa história também aconteça em outras casas. Um dia a gente decide o cumprimento das próprias bermudas. Se quiser usar bermudas. Um dia a gente constrói o próprio poder de decisão.
Como num passe de mágica, a gente percebe que é mulher de verdade. Sabe a dor e a delícia de ser essa mulher de verdade, como diria Caetano. E já não importa se o vermelho Madonna vem de casa ou do salão. Não importa sequer se as unhas são pintadas. A gente é mulher, já gritou a independência, paga o próprio telefone, compra o Colorama para as filhas, sobrinhas, irmãs mais novas. Ou não. E ninguém tem nada a ver com isso.
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