Profeta Gentileza: um homem, uma lenda

Conheça a história de José Datrino, figura emblemática do Rio de Janeiro nas décadas de 70 e 80
domingo, 13 de novembro de 2016
por Ana Blue
Profeta Gentileza: um homem, uma lenda

Noite fria, noite quente, céu azul, céu cinza, céu sem cor. Dia passa, noite cai, e mesmo quando é manhã de novo, o tormento da cidade grande chega ao nosso encalço. Bondades cada vez mais raras, amizades cada vez mais ralas, relações cada dia mais rasas. Pessoas que não se ouvem, passantes que não se olham, um mundo inteiro de homens que sequer se cumprimentam. Até que um dia, um dos mais frágeis deles, se tornou conhecido por fazer inscrições peculiares sob um viaduto situado na Avenida Brasil, na zona portuária do Rio de Janeiro. As inscrições pediam exatamente aquilo que, idealmente, nem deveria ter que ser pedido. Amor. Bondade. Paciência. Cuidado. Gentileza. 

“Gentileza gera gentileza” 

O homem era José Datrino, que viria a ser conhecido por todos como Profeta Gentileza, figura emblemática das ruas da Cidade Maravilhosa dos anos 70/80. O Profeta se vestia a caráter — túnica branca, barba bem comprida —, e saía por aí, a pregar mensagens de tolerância. Chamava a atenção dos estudantes que falavam palavrões perto dele, além das mulheres que usavam saias curtas. A partir de 1980, escolheu 56 pilastras do viaduto da Avenida Brasil, que vai do Cemitério do Caju até o Terminal Rodoviário do Rio de Janeiro, numa extensão de aproximadamente 1,5 km, encheu as pilastras do viaduto com inscrições em verde-amarelo propondo sua crítica do mundo e sua alternativa ao mal-estar da civilização. Durante a Eco-92, Gentileza colocava-se estrategicamente no lugar por onde passavam os representantes dos povos e incitava-os a viverem a gentileza e a aplicarem em toda a Terra.

Com o decorrer dos anos, os murais foram danificados por pichadores, sofreram vandalismo, e mais tarde cobertos com tinta de cor cinza pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. A eliminação das inscrições foi criticada e posteriormente com ajuda da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, foi organizado o projeto Rio com Gentileza, com o objetivo restaurar os murais das pilastras. Começaram a ser recuperadas em janeiro de 1999. Em maio de 2000, a restauração das inscrições foi concluída e o patrimônio urbano carioca foi preservado. Este ano, no entanto, as obras voltaram a ser alvo de vandalismo.

Quem foi Gentileza?

Datrino teve uma infância de muito trabalho, na qual lidava diretamente com a terra e com os animais. Para ajudar a família, puxava carroça vendendo lenha nas proximidades de casa. O campo o ensinou a amansar burros para o transporte de carga. Tempos depois, já como Profeta Gentileza, se dizia “amansador dos burros homens da cidade que não tinha esclarecimento”. 

No dia 17 de dezembro de 1961 ocorreu a Tragédia do Gran Circus Norte-Americano, considerada uma das maiores fatalidades em todo o mundo circense, e neste incêndio morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças. Na antevéspera do Natal, seis dias após o acontecimento, José acordou alegando ter ouvido “vozes astrais”, segundo suas próprias palavras, que o mandavam abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao mundo espiritual. Datrino pegou um de seus caminhões (ele tinha sido dono de uma empresa de transportes) e foi para o local do incêndio, onde hoje encontra-se a Policlínica Militar de Niterói. Plantou jardim e horta sobre as cinzas do circo em Niterói, local em que fez sua morada por quatro anos. Lá, Gentileza incutiu nas pessoas o real sentido das palavras Agradecido e Gentileza. Foi um consolador voluntário, que confortou os familiares das vítimas da tragédia com suas palavras de bondade. 

Após esse período, Gentileza começou a sua jornada como personagem andarilho. A partir de 1970 percorreu toda a cidade. Era visto em ruas, praças, nas barcas da travessia entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, em trens e ônibus, fazendo sua pregação, suas inscrições no concreto e levando palavras de amor e respeito pelo próximo e pela natureza a todos que cruzassem seu caminho. Aos que o chamavam de louco, ele respondia: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”.

Figura controversa

No entanto, um artigo da edição de 21 de fevereiro de 2010 do Jornal do Brasil, de autoria da professora Luiza Petersen e do jornalista e escritor Marcelo Câmara, que conviveram com Datrino, afirma que ele, apesar de falar em gentileza como um mantra, era “agressivo, moralista e desbocado. Vociferava, ofendia e ameaçava espancar transeuntes ao ponto de às vezes ser necessário chamar a polícia para acalmá-lo. A maioria da população, especialmente as mulheres e crianças, fugia dele”. A imagem que se criou dele após sua morte, segundo os autores, não corresponde às lembranças dos que conviveram com ele durante os anos 1960 e 1970. O ator Cláudio Raposo, no entanto, que também conviveu com o Profeta, rebate: “Mas era uma agressividade na forma de querer alertar o povo e não fisicamente ou tratando mal as pessoas”.

José Datrino morreu em maio de 1996, aos 79 anos. No final do ano 2000 foi publicado pela EdUFF (Editora da Universidade Federal Fluminense) o livro Brasil: Tempo de Gentileza, de autoria do professor Leonardo Guelman. A obra introduz o leitor no “universo” do profeta Gentileza através de sua trajetória, da estilização de seus objetos, de sua caligrafia singular e de todos os 56 painéis criados por ele. O livro é ricamente ilustrado com inúmeras fotografias, principalmente do profeta e de seus penduricalhos e painéis. Além de fotos do próprio Profeta Gentileza trabalhando junto a algumas pilastras, existem imagens dos escritos antes, durante e após o processo de restauração.

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