Ana Blue
Num mundo ideal, eu teria aprendido a tocar piano aos quatro anos. Era esse o meu sonho, mas sabe-se lá por que o meu primeiro encontro com um piano foi desastroso. Não aprendi das teclas a mínima nota, por mais que a professora Patrícia insistisse. Eu jamais seria uma Mozart friburguense.
Essa coisa de nascer com um dom é realmente algo divino e maravilhoso, não há outra explicação. Nas minhas músicas preferidas, a impressão que eu tinha era a de que o cantor falava comigo, pra mim, de mim. Até que percebi que as vivências humanas são bastante parecidas. Quem nunca teve um prato preferido da vovó, quem nunca namorou um cara que usa Kaiak? Só que tem gente que consegue expressar isso, musicar isso, esses ciclos que todas as gentes vivem, mas o fazem sensível e poeticamente, de uma forma que nos faz sentir que somos todos iguais — e somos.
Depois da decepção pianística, meu amor pela música ficou ali, admirando de longe grandes intérpretes, enquanto me jogava nos caraoquês dos bailes da vida, minha única experiência de redenção com a música que não compus e não toquei no meu piano imaginário. Ouvindo a melodia dos violões que não aprendi a tocar, os vocalizes que Ágni me ensinou, mas não fui capaz de aprender. Amor eu tinha, dedicação também. Talvez eu até pudesse aprender a técnica, mas me faltava o maldito do dom. Eu continuo achando que é uma questão de ter ou não o dom. Que a gente nasce de olho castanho ou verde, cabelo preto ou ruivo, sob escorpião ou sagitário, tendo dom pro violão ou pra ginástica rítmica. Sem o dom eu não era nada, eu jamais passaria de troféu abacaxi do Chacrinha.
Entretanto, contudo, todavia, porém, quis o destino que eu me apaixonasse pelo Xandão. Xandão era um cara alto e inteligente, um italiano com cara de mau — de mau não, de péssimo. E ele era produtor musical, eu achava isso importante na época sem nem saber exatamente o que significava. Nunca me esqueci a primeira vez que fui a sua casa e entrei, de curiosa e meio bêbada, na cabine de gravação. Cantei Juca, do Chico. Deve ter sido um circo de horrores.
Desde então, acompanhei bem de perto esse universo. A construção passo a passo do estúdio. A troca do computador por um melhor, a substituição das interfaces. Os rastreamentos de produtos do Mercado Livre. No meio de tudo isso, gravidez, casamento e reforma da cozinha. As horas, meu Deus do céu, quantas e quantas horas dentro daquela cabine. Os milhares de tutoriais. Quanta gente entrou na minha casa. Quanta gente saiu. Quanta gente valorizou aquele trabalho e fez a gente se sentir o máximo. Quanta gente chupou até a última gota do nosso sangue e depois saiu por aí, fazendo audiocópia malfeita.
Quando a gente é só ouvinte, não faz ideia do trabalho que é produzir uma canção. O sofrimento da composição, a busca da rima, da palavra que estava até agora a pouco na ponta da língua e simplesmente sumiu. Depois ensaiar. Conciliar o horário do dentista do vocalista com a acupuntura do filho do baterista. E depois enfiar toda essa gente numa sala atapetada. E depois assistir o produtor fazer isso tudo virar poesia.
Quando a gente é só ouvinte, não faz ideia do quanto este trabalho vale. De quantas horas isso toma da vida de uma pessoa. Só quem tem um músico em casa conhece o real sentido da palavra dedicação. Até uma música ser mixada e masterizada, Xandão já me fez ouvi-la umas trezentas vezes. Às vezes nem a música inteira, mas um pedaço de seis segundos onde ele colocou mais um prato de bateria. Quantas vezes fiquei, apaixonada, sentada no tapete da cabine, ouvindo Paulinho Moska ao violão do meu amor. E ainda tem gente que acha que música é só ligar microfone, gravar meia dúzia de palavretas e usar crachá de produtor e compositor.
E sabe o que é pior? Ninguém tem o valor que merece. O ouvinte não quer pagar o valor justo do CD e do couvert. O restaurante não quer pagar o valor justo do cachê. O músico não quer pagar o valor justo pela produção. Mas certamente ninguém quer ficar sem a música tema do casal, a música pra entrar com o pai no altar, a música da festa de fim de ano dos funcionários da firma. Ninguém quer viver sem música, mas ninguém quer pagar por ela.
Esse é um texto para Xandão, para Darlan, para Chaulyn, Victor, Bruno, Yure. Para Rodrigos, Fábios, Ricardos, Giovanas. Pra quem nos abraçou e pra quem fugiu. Pra quem tem dom e quem não tem. Aliás, eu nunca fui a pianista que quis ser, nem a cantora que fui em todos os chuveiros de todas as casas onde cantei. Mas que bom que encontrei a outra metade do meu coração, que estava tocando violão por aí. Que bom que encontrei Xandão. Que bom que encontrei o meu dom: escrever. Assim como cantar, escrever é uma linda forma de se fazer da vida, poesia.
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