Ponto de Vista - 01/06/2013

segunda-feira, 03 de junho de 2013
por Jornal A Voz da Serra

Para discorrer sobre um tema que vem sendo alvo de acaloradas discussões em todo o país, convidamos o advogado criminalista friburguense doutor Rafael Borges. Formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em Nova Friburgo presidiu a Comissão de Direitos Humanos da OAB local na gestão do doutor Carlos André Pedrazzi, e em seguida, assumiu a função de conselheiro na atual gestão, do doutor Rômulo Colly Filho. Desde 2004, Rafael trabalha no escritório do renomado professor e advogado Nilo Batista, no Rio de Janeiro.

 

 

Maioridade penal — Desconstruindo mitos

 

Rafael Borges

Não é possível conduzir um debate sério sobre a redução da maioridade penal sem propor a desconstrução de alguns mitos. Definitivamente, parece inoportuno e desleal trazer para essa arena o compreensível sofrimento de famílias vitimadas por adolescentes infratores. A dor irreparável que produz a perda de um ente querido não é boa conselheira de políticas públicas. Soluções vingativas e emocionais são típicas de espaços privados e, para o bem do processo civilizatório, é bom que se restrinjam a essa esfera. Um Estado que aja com objetividade e sem passionalismos é garantia do cidadão, que deve sempre esperar tratamento isento, justo e legal. O calor de acontecimentos dramáticos, divulgados pelos meios de comunicação com viés ideológico nitidamente repressivo, deve, na medida do possível, se distanciar do debate. Onde floresce a legislação penal de emergência, midiática, emotiva e irrefletida, aí enfraquece o estado democrático de direito. 

Mas vamos à desconstrução dos mitos. 

Diferente do que se propaga, é uma meia-verdade afirmar que a maioridade penal no Brasil se inicia aos 18 anos de idade. À luz dos artigos 99 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a inimputabilidade absoluta recai somente sobre os menores de 12 anos, estando todos os demais sujeitos às medidas repressivas que vão desde a advertência (art. 112, inciso I, ECA) até a internação em estabelecimento educacional (art. 112, inciso VI). Ou seja, qualquer adolescente entre 12 e 18 anos responde pelos atos infracionais que comete, podendo permanecer encarcerado por até três anos, ainda que caiba recurso da decisão que o condenou. E aquilo que o ECA apelida de "estabelecimentos educacionais” são instituições bastante assemelhadas aos presídios do sistema penal reservado aos maiores de idade. São cadeias sujas e espaços de confinamento que servem apenas à reprodução de estigmas e à inflição de dor. São repetidas ali todas as deficiências do sistema carcerário adulto, destino final e derradeiro da maior parte dos adolescentes internados. 

Também é descabida a equiparação de direitos essencialmente distintos, como a aptidão para o voto e a submissão a uma legislação repressiva especial (ECA). Além de igualar aspectos diversos da subjetividade humana, esta linha argumentativa desconsidera que apenas aos 35 anos de idade o indivíduo poderá exercer plenamente seus direitos políticos, sendo certo que, dos 16 aos 18 tem somente aptidão política ativa (para esta faixa etária o voto é facultativo, portanto, não é também um dever), ainda não podendo ser votado para qualquer dos cargos eletivos disponíveis, sequer para vereador do município. O adolescente pode escolher seus representantes, se assim o desejar, mas não pode ser escolhido. Exerce parte dos direitos políticos. O mesmo ocorre no que toca a maioridade penal: embora o adolescente não responda pelos crimes que comete com penas privativas de liberdade e cadeia, responde com medida socioeducativa e estabelecimento educacional. São dois pesos e duas medidas, no direito ao voto e na fixação da maioridade.

Tornou-se lugar-comum, e talvez esse seja o argumento mais recorrente, comparar a juventude de hoje com a de 1940, data em que foi promulgado o Código Penal vigente, destacando o volume de informações em circulação e certo amadurecimento juvenil generalizado. Bastaria examinar a idade média atual de emancipação dos jovens e de constituição de novas famílias para perceber o equívoco do argumento. Seja em razão de circunstâncias econômicas, afetivas ou sociais, o jovem brasileiro de hoje, com todas as facilidades da internet e da modernidade, é menos maduro do que o jovem brasileiro de antigamente. Ele sai da casa dos pais mais tarde, começa a trabalhar mais tarde e se casa mais tarde. Além disso, segundo dados divulgados recentemente pelo Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça, do quantitativo de presos encarcerados em 48 estabelecimentos penais catalogados no estado do Rio de Janeiro, aproximadamente 80% são analfabetos ou não concluíram o ensino fundamental. As camadas sociais favorecidas pela internet e pelo incremento dos níveis de instrução não são as mesmas que o sistema penal seleciona. Em regra, o jovem brasileiro criminalizado não acessa canais qualificados de informação.

Outro mito associa o crescimento dos chamados "índices de criminalidade” à inimputabilidade dos menores de 18. É dizer: o fato de adolescentes não poderem responder por crimes funciona como estímulo à delinquência. O raciocínio parte da crença de que a redução da maioridade penal inibiria a prática de novos delitos, o que é falacioso. Desde 1940, a legislação penal brasileira vem sendo rotineiramente endurecida, quer com o aumento de penas, quer com a criação de novos delitos. No entanto, esse dado — o endurecimento da legislação penal — jamais se prestou à diminuição da prática de crimes, que continuarão sendo cometidos independentemente de enquadramentos legislativos. E esse mito também é desconstruído pelas estatísticas. Para ficarmos com o exemplo de um Estado considerado "violento”, cujo governador é grande entusiasta da redução da maioridade, o IBGE registra que cerca de 35% da população de São Paulo tem menos de 18 anos. Entretanto, essa faixa etária responde por menos de 1% dos homicídios dolosos e aproximadamente 1,5% do total de roubos. Não é aí que mora o problema. 

Tramitam mais de 30 projetos de emenda constitucional (PEC) no Congresso Nacional para reduzir a maioridade penal. A PEC 345/2004 deseja fixá-la em 12 anos; a PEC 489/2005 quer acabar com qualquer limite etário, estabelecendo que, caso julgue "que seu grau de maturidade justifica”, o juiz pode aplicar a pena sem observar a idade, indistintamente. Nosso sistema carcerário abriga hoje mais de 500 mil presos, com uma maioria vergonhosa e absoluta de pretos, pobres, periféricos e desvalidos. Somos o terceiro do mundo em nível de encarceramento, perdendo para o imbatível Estados Unidos (cerca de dois milhões) e para a China, que tem a maior população viva do planeta. O estado americano da Califórnia gasta mais com presídios do que com educação. Assim, a manutenção da maioridade penal brasileira nos atuais 18 anos também é uma opção política. Opção que sinaliza para a construção de um estado de bem-estar social pleno, que recorra ao encarceramento de indivíduos como medida excepcional, que promova educação pública de qualidade, que reduza as diferenças sociais e que seja capaz de construir um futuro melhor para suas crianças e adolescentes, sem distinção de origem social. 

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