Quem tem mais de 50 anos certamente se lembra. A “roda dos expostos” (ou dos excluídos) existiu no Brasil por mais de dois séculos (1726 a 1950), possibilitando que as mães de filhos indesejados os entregassem às instituições de caridade (asilos, santas casas/maternidades, abrigos e igrejas). Proposta semelhante está em debate. O Projeto de Lei 2.747/08 institui o parto anônimo no Brasil. Se aprovado, a mãe que não desejar o filho terá o anonimato preservado e acompanhamento, inclusive psicológico, durante o pré-natal, custeado pelo estado. Após dois meses (período de aleitamento), entregará a criança a uma instituição, que a encaminhará a adoção. Defendido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), protocolado pelo deputado Eduardo Valverde (PT-RO) em 11 de fevereiro, está tramitando na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Advogado em Nova Friburgo, com formação em psicologia, especializado em responsabilidade civil e em direito de família, Jorge Luis “Mariel” Siqueira (foto), associado do IBDFam, participou do VI Congresso Brasileiro de Família (Belo Horizonte) em novembro. No evento, a entidade amadureceu a proposição legislativa que tenta conter o abandono infantil. Profissional atuante e preocupado em minimizar os dramas sociais, Jorge “Mariel” Siqueira apresenta quinzenalmente, às quintas-feiras, desde fins de outubro do ano passado, na TV Zoom (canal 10 do sistema a cabo), o programa O Direito em Família, que criou para tratar diversos assuntos de sua área jurídica. Além disso, vem debatendo vários temas de interesse da sociedade, entre os quais a idéia do parto anônimo.
Conscientização
“É minha obrigação, como cidadão e militante do direito de família, levantar a questão, porque daqui a um ano, dois, se for aprovada e as pessoas não estiverem sabendo, será outra dificuldade: fazer cumprir. Pode ser mais uma lei que não pega”, disse o advogado em recente entrevista à emissora de rádio local. Para ele, “a lei tem que ter uma relação com a sociedade e com a realidade”. E frisa: “Neste momento achamos que se deva debater, para que a lei, quando aprovada, e assim o esperamos, seja do conhecimento da maioria”, diz, inclusive, se disponibilizando a fazer palestras sobre o tema em faculdades e onde mais haja interessados.
“Mariel” esclarece que, embora guarde semelhança com a antiga ‘roda’, “a idéia não é reeditar propriamente o artefato de madeira, tipo berço, usado antigamente para deixar os recém-nascidos” à porta das instituições. “O parto anônimo se espelha no modelo da ‘roda dos expostos’, mas tem orientação diferente. Os filhos a serem deixados serão oriundos das classes mais necessitadas”, explica. Segundo ele, “esta é a maneira de garantir hoje a vida da criança. Vemos abandonos dos filhos pelas mães dia a dia, nos jornais, na TV, no rádio. Temos que ter uma solução para isso. Vemos também um desenfreado número de abortos, clandestinos, sem segurança para a paciente. Isso é um problema de saúde pública”, alerta.
O advogado acrescenta que “a ‘roda dos expostos’ era onde paravam os filhos indesejados da elite, que tinha de fazer tudo às escondidas”. Hoje, segundo ele, é o contrário. O parto anônimo visa privilegiar e conduzir a criança carente. O advogado lembra que antes da Constituição de 1988, filho legítimo era o concebido no casamento e ilegítimo, aquele concebido fora do casamento. “Hoje, dentro ou fora do casamento é a mesma coisa”, ressalva.
Consciente do quanto a idéia é polêmica, o advogado defende que, por isso mesmo, o tema deve ser bastante debatido pela sociedade. “Não podem continuar os casos de abandono de crianças; não vamos prejulgar as mulheres por fazerem isso. Elas têm que ter alternativa”, diz, defendendo em seguida: “Vamos investigar, mas, em primeiro lugar, vamos proteger a criança, pois quando tem menor abandonado nos sinais, trombadinhas assaltando, achamos que tem que diminuir a idade penal, mas não nos envolvemos na solução. Temos que cuidar da causa”, afirma.
Alternativa temporária
O advogado explica ainda que a intenção não é só a mãe deixar a criança. “Ela terá 60 dias para decidir. A intenção é mostrar-lhe a possibilidade de criar seu filho. Ela vai ter poder de decisão. Só entregará o filho se realmente, depois disso, não tiver condições. Podem perguntar se o Estado vai gastar dinheiro com isso, mas gasta muito mais correndo atrás de quem abandona, fazendo processo criminal contra essa pessoa... Se gastar bem o dinheiro com uma criança, que adulto ela não vai ser?”, questiona, torcendo para o projeto ser aprovado ainda este ano. “Já poderíamos colocá-lo em prática em 2009”, diz, embora admita que sofrerá muitas emendas durante discussão no Legislativo.
Segundo ele ainda, a proposta não é, de maneira nenhuma, definitiva. “É para enfrentar, de imediato, esse crescente número de menores abandonados. Esperamos que, como fez a Espanha, possa ser eliminado o mais rápido possível. Não queremos o parto anônimo para sempre. Queremos que a sociedade tenha dignidade e as pessoas tenham filhos, quando queiram e não por imposição”, diz, sustentando ainda que não se pode menosprezar o grande número de gestações de meninas, na faixa de 11 e 12 anos, muitas vezes feitas escravas sexuais pelo tráfico. Outro aspecto que ressalta é que, aprovado, o projeto beneficiará as adoções. “Com a burocracia, hoje uma adoção pode levar alguns anos”.
Estatuto das famílias
Com quatro mil associados (advogados, psicólogos, sociólogos, juízes, desembargadores e ministros), o IBDFam discute várias e importantes questões. “Somos uma pequena célula. Poderíamos propor o projeto e acabou”, afirma, destacando, no entanto, a atuação da entidade. Ele lembra que o IBDfam prepara para outubro o I Congresso Internacional do Direito de Família, com presenças confirmadas de representantes da Argentina, Holanda, Bélgica, Espanha e Canadá. E comenta ainda que o instituto tem uma importância tamanha, pois parte de seu trabalho resultou na maioria das modificações atuais sobre direito de família, como o Projeto de Lei 2.285/2007, também na CCJ. É o Estatuto das Famílias, com várias inovações. A mais emblemática trata da união homoafetiva. “O Estatuto é das Famílias porque hoje existe família de pai e mãe, que a gente conhece; família em que pai cria filho sozinho; mãe que cria filho e família de parceiros homossexuais, tanto masculinos quanto femininos. No Código Civil, no qual o Estatuto se referencia, existe um capítulo relacionado ao direito de família. A idéia é que, a exemplo de um código para o direito tributário, um para o direito trabalhista; tenhamos o do direito de família, com várias novidades. Entre as principais, a união civil. O Código atual fala em relação entre o homem e a mulher. No Estatuto das Famílias, a união estável também contempla a união homoafetiva, uma realidade dos nossos dias”, frisa.
Segundo o advogado, o Estatuto traz modificações relativas a inventário, herança e casamento, abrindo, inclusive, a possibilidade de acabar a separação e ficar só o divórcio. Quanto ao problema infantil, lembra que existem vários tipos de abandono, e cita outra proposta: “Além do abandono da criança debaixo de uma ponte, dos pais que botam os filhos para vender mariola há, ainda, o dos pais que não registram os filhos”. E exibe números expressivos: na Região Sudeste são 12 por cento e, no Brasil, 30% as crianças sem registros.
“Neste sentido, também desde março agora se encontra na Câmara dos Deputados o projeto da paternidade imediata: ao nascer a criança, a mãe já indica no registro o nome do suposto pai; o tabelião leva o nome ao juiz que, juntamente com o Ministério Público, abre um processo de investigação de paternidade. Será pedido exame de DNA e averiguado se o pai é verdadeiro ou não”. O advogado explica ainda que hoje muitos casos estão sendo investigados, “mas no momento em que se indica imediatamente após o parto, já podem ser tomadas as devidas providências”. E completa explicando que se não for provado que é o pai, será um problema que a mãe terá na Justiça (danos materiais, morais e até criminoso), “por indicar uma pessoa que sabia não ser o pai”.
Parto anônimo: sete países permitem a prática; ONU e feministas são contra; Espanha aperfeiçoou o sistema
Criada pela Igreja Católica no século 12, a ‘roda dos expostos’ se iniciou no Brasil em 1726, por Salvador; depois Recife (1825) e Rio de Janeiro (1938). Na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo funcionou a última ‘roda’ até 1950. Instalada em 1825 pelo Visconde de Congonhas do Campo (Lucas Antonio Monteiro de Barros), então provedor da Santa Casa e primeiro governador de São Paulo, na condição de senador do Império, recebeu 5.696 crianças em 125 anos. A média era de 45 bebês/ano encaminhados ao Asilo Sampaio Viana, no Pacaembu.
França (há 50 anos), Luxemburgo, Itália, Bélgica, Holanda, Áustria e grande parte dos Estados Unidos (28 dos 50 estados) adotam o parto anônimo. A Espanha, entretanto, aboliu a prática de sua legislação, enquanto o Comitê dos Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU) considera que viola o direito da criança conhecer sua identidade. No Brasil, a ong Rede Feminista de Saúde (RFS) considera o projeto “mais uma tentativa de evitar a descriminalização do aborto”.
Segundo o advogado Jorge Mariel Siqueira, a Espanha erradicou a prática porque fez um sistema semelhante, ao abrigar mãe e filho, oferecendo toda segurança pré-natal e abrindo frentes de trabalho para as futuras mães. Segundo ele ainda, o país europeu tem projetos melhores. “Lá existe uma coisa de que a gente fala há muito tempo, que é o controle da natalidade. Os hospitais estão preparados; lá temos uma evolução maior, em termos sociais. Nossa realidade, hoje, não é a da Espanha”, frisou.
Já quanto a violar o direito da criança em conhecer sua identidade, o advogado pensa que quando a criança tiver idade suficiente, nada impede que saiba sobre sua mãe biológica. “Isso não é muito comum. Numa adoção, geralmente, se evita isso. Até para não haver problemas futuros, porque, na adoção, o maior receio é se, depois, a família biológica vai querer direitos também sobre os adotados.” No entanto, o advogado é categórico: “Se tiver que decidir entre a vida da criança e o direito futuro de conhecer sua identidade, não tenho dúvida: fico com a vida da criança”.
O abandono ao longo dos tempos
No século 17, 5% das crianças livres no Brasil eram abandonadas. Em São Paulo eram 15% das crianças abandonadas entre 1750 e 1850.
O país só começou a se preocupar com o abandono infantil após a Declaração dos Direitos Humanos (1948).
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