Rodoviárias
Nas muitas estruturas habituais que passam despercebidas aos nossos olhos calejados pelas cenas comuns demais do dia a dia, moram verdadeiros templos, disfarçados pela ausência do extraordinário, mas preenchidos por fábulas que não podem ser lidas se não tiver alma atenta.
A passagem de ida tem a expectativa da volta, mas quem garante que sempre é possível ir e voltar? Mas na esperança de cumprir seu destino, por mais que o destino seja esse caçador feroz disfarçado de imperceptível, o homem viaja, vaga, passeia nas suas idas e vindas certo de que voltará para os braços que lhe acenaram na necessária partida. Leva consigo lembranças que sustentam seus compromissos, suas tarefas a cumprir.
E assim, desatentos, quase todos, se não todos exorcizam as rodoviárias. Mas há lago de poético nas rodoviárias, mesmo que elas representem uma parte um tanto ruim e repetitiva nos nossos dias. Rodoviária é sinônimo de espera, inquietação, filas, suor, cotoveladas... Mas há algo de fantástico nas rodoviárias que o dia a dia nos impede de enxergar: a rodoviária é o intervalo, os parênteses do nosso cotidiano. É o instante em que o pai de família deixa de ser pai de família para ser o trabalhador. É o momento em que todos deixam seus lares de algum modo para ir de encontro às suas funções na sociedade. É, pois, a interseção entre o lar e o mundo. Nessa interseção é que nascem os personagens e as suas histórias. Rodoviária é de certa maneira a transição, de uma história para outra. E todos, absolutamente todos, têm histórias e de alguma maneira vestem um personagem. Se bem observadas não há história ou personagem desinteressante. Mesmo o menino com seu MP3; o folgado que ouve música sem fones de ouvido compartilhando seu gosto com todos os outros; a mulher com sua bengala e a vitória diária do seu esforço quase hercúleo em conseguir se deslocar; a mãe com suas crianças; a solitária com suas bolsas e bugigangas que não cabem nos braços; o fanático com sua bíblia nos braços tentando convencer a todos com sua crença; o solitário que inveja os de mãos dadas e almas atadas e o mesmo solitário que espera confiante por seu encontro; o relógio com ponteiros lentos que perecem não fazer a hora passar e o mesmo relógio com ponteiros quase furiosos que fazem a hora voar. Rodoviária é, portanto, uma explosão de fábulas do cotidiano. Rodoviária é um templo que guarda memórias, conquistas, fracassos, amores, decepções, sonhos, fé, descrença, diferenças, indiferenças... É um templo da vida se confirmando, é uma arcada que vê a vida ir e voltar. Um chão de estrelas sem luzes estrelares, mas com passos repletos de vontade de chegar a algum lugar.
Rodoviária é acima de tudo um encontro de desconhecidos. Todos desconhecidos, mas com finalidades conhecidas: cumprir seu papel, suas missões, algumas maiores, outras menores, mas todas igualmente importantes. Por isso, talvez nos pareça tão estranho. Estranhos no estranho ato comum de chegar e partir, levar e deixar, porque ainda que despercebido sempre se leva algo das ruas e dos encontros, ainda que encontros de meros desconhecidos que sequer se cumprimentam. E dentro da rodoviária é onde isso mais acontece, pois ainda que atrasado não se pode correr, é preciso esperar se se quer chegar a algum lugar!
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