Eu começaria este texto falando sobre o sentido de gentileza, mas acordei com Trump em 2017. Olhei a Laís, minha filha, e pensei: como vou explicar esse mundo para ela? Uma criança de quatro anos, que desenha constantemente sobre um mundo melhor, mergulhada num futuro que não escolheu para si. Como educar e proteger sua bondade e sua sensibilidade num mundo que fará questão de rasgar tudo isso, em qualquer 9 de novembro assim?
Neste segundo parágrafo, eu escreveria sobre a gentileza em cada gesto, dos elementos que a compõem, mas que não definem o conceito em exatidão. Citaria amabilidade, cortesia, empatia, cordialidade. Mas eu acordei com Trump em 2017. Um senhor que vomitou todo seu machismo nos debates, que agrediu verbalmente imigrantes, que questionou direitos civis. Um homem que, do alto de sua Trump Tower com superfícies revestidas por folhas de ouro, fez uma campanha pautada na lógica do ódio — que é o próprio medo imputado. E um “temer o terror” que nos leva ao terror na prática.
O terceiro parágrafo irei manter. Coube aqui, vamos lá, como qualquer esperança que ainda faça sentido em nossos olhos. Porque gentileza é vagarosa, é grão em grão. É um cultivo que não faz tanto barulho e projeção quanto o concreto armado que desumaniza nossas decisões. Mas é um cultivo que gera consequências bonitas, sentidas a longo prazo. Eu penso gentileza enquanto ações despretensiosas. Não é educação, respeito. É mais. Educação é ajudar alguém a atravessar a rua. Bonito sim. Mas gentileza é ajudar alguém a atravessar o próprio ego. É escutar o desabafo mais amargo sem questionar. Porque é um desabafo: e isso não pede sentido. Gentileza é ceder espaço aos limites do outro, é algo que não se cobra, porque não se toca facilmente.
E gentileza não se aprende, nem se ensina. Você pode pintá-la em muros, mas os gritos não condizem. Você pode até ganhar o apelido de profeta. Tudo bem. Mas não é de profetas que necessitamos. A teoria é fraudulenta ao primeiro sinal de agressão. Até esse meu texto aqui. Colocar gentileza em prática é fazer parecidos embrulho e presente. É ocupar dedos segurando a cruz do outro, é dividir ombros, porque o peso de todo mundo dói. Gentileza é constrangimento diante da criança que vai crescer exatamente aqui, galgando os próprios pilares de medo e preconceito. A não ser que o constrangimento forneça mudança.
Este quinto parágrafo tinha uma lição de moral. Apaguei, claro — como sempre apago. Porque não tenho muito de profeta e fico tentando aprender a ser gentil sem saber nada da teoria. A minha sorte é que tento bastante — e é o meu azar também. Porque eu acordei com Trump em 2017, como acordo todos os dias com o conservadorismo sentado e sustentado no meu país de carnaval. São contradições que ferem nossa frágil democracia, nossa ideia paradisíaca de cristianismo. Esse negócio de amar o outro como a si mesmo é o início mais puro da gentileza humana. Mas são palavras. Frágeis em interpretação, como toda linguagem. Manipuláveis, como qualquer teoria que grita nossa fragilidade.
E eu comecei este texto, porque olhei para a Laís hoje de manhã. E sei que ela está “escrevendo” um livro sobre um mundo melhor. Sei que é um jardim encantado que some. Sei que tem uma bruxa que engana o sol. Sei que tem umas flores de uva que resistem. Sei que tem uma princesa encantada que luta sem príncipe. Mas não tem final ainda. Ela procura o melhor jeito de trazer o jardim encantado de volta. Não encontramos ainda. Mesmo que a bruxa morra, quem vai ter o trabalho de pintar um jardim inteiro novamente? Alguém gentil, de fato. É como se o mundo em decadência eterna não valesse ou suportasse a própria reconstrução. Aí eu lembro a cantiga de Drummond a dizer que “o mundo não vale o mundo, meu bem”. É, não vale. Nem o jardim encantado deve valer o jardim. Mas a gente ainda deve valer alguma coisa dentro de si mesmo. Sei lá. Outro dia, talvez.
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