“Não deixem de estudar, nem de ensinar. Não cruzem os braços. Ser aluno e professor devem ser nossos eternos compromissos”
Em 2014, por esta mesma época, fomos à residência da professora aposentada Thereza de Jesus Barbosa Barros para ouvi-la sobre a paixão de sua vida: o magistério. Quatro anos depois, voltamos. Agora, aos 96 anos, ela continua cativante, lúcida, bem informada e interessada nos rumos da educação no país, e, embora decepcionada com tudo que vem assistindo, o recado que manda é positivo:
“Não desistam. Professores e alunos precisam dar valor à construção do conhecimento e todos os jovens com vocação para o magistério, devem perseverar. Qualquer país, para se desenvolver e ser respeitado como nação, precisa de cidadãos educados e preparados para ter uma profissão, vencer na vida. Ensinar é uma missão sagrada e um dia a educação voltará a ocupar o lugar que merece”.
A professora Therezinha, como a chamam seus colegas (‘eu sempre fui baixinha’), começou a carreira no Rio de Janeiro, onde nasceu. Aqui em Friburgo, viveu seus primeiros 10 anos de vida, voltou para o Rio ainda durante o primário, onde acabou por concluir os estudos de português, francês e latim. Adulta e professora graduada, retornou, definitivamente, a Friburgo. Em 1953, convidada pelo professor Humberto El-Jaick, começou a lecionar no Colégio Rui Barbosa (atual Ceje), no Cêfel, e na Faculdade de Filosofia (antiga FFSD).
É enfática ao defender a profissão: “Jamais me arrependi da escolha que fiz e até hoje sinto muita falta, saudades do meu tempo em sala de aula. Não me conformo com aposentadoria aos 70 anos, na rede pública, ao contrário da particular, onde continuei ainda por um tempo. Muitos de nós estamos aptos, de todas as formas, a continuar trabalhando. Naturalmente, aos 70 já não temos o mesmo vigor e disposição para dar aulas, mas também não somos totalmente inúteis. É uma questão de adequar horários e disponibilidade de cada um”, avaliou dona Thereza, que na entrevista anterior condenou sua aposentadoria compulsória, aos 73, que ela chama de “expulsória”.
E insistiu: “Principalmente, nesses tempos em que é comum as pessoas viverem bem até os 90 ou mais, como eu”, disse, e para melhor ilustrar seu argumento, contou que fez questão de votar no último domingo, 7. “Não delego aos outros o que diz respeito a mim, sou responsável pelas escolhas que faço”.
O caos na educação
A incompetência, negligência e falta de visão na gestão da rede pública de ensino, é o tripé responsável pelo caos na educação. Em todo o país o que se vê é o desmantelamento do setor, em todo o seu espectro: as precaríssimas condições dos prédios onde funcionam as escolas, a falta de estrutura para o pleno desenvolvimento das disciplinas, os baixos salários, o desinteresse dos alunos. Enfim, temos uma cadeia de acontecimentos que vão destruindo todo o sistema educacional, num efeito dominó. Todas essas questões são apontadas pela veterana ao avaliar o triste panorama da educação pública no Brasil. Exceção para o ensino particular, porém acessível apenas para uma pequena parcela da sociedade.
“Como chegamos a esse ponto? Eu vivo me fazendo essa pergunta, queria entender o que acontece para esse abalo na educação. Naturalmente, há problemas nas famílias, mas a principal razão para o que estamos assistindo, é problema de governo. Há mais de 60 anos anos, quando eu estava no início da minha carreira, além dos chefes de família, muitas mulheres já trabalhavam. Não eram tantas quanto hoje. Mas as mães trabalhavam fora e davam conta de orientar os estudos dos filhos e eles iam bem na escola pública. De uns anos para cá, a coisa foi deteriorando e continua nesse processo. E assim, o ambiente social, como um todo, vai se degradando e cada vez mais afastando os jovens das salas de aula. Parece uma engrenagem que vai capturando essas crianças que estão aí pelas ruas, perambulando sem destino, sem assistência nem orientação. A ociosidade faz delas presa fácil do crime e a violência se instala. É uma bola de neve que não para de crescer e quanto mais tempo demorar para enfrentar esse problema, mais difícil vai ficar”, alerta dona Thereza.
“Assim como falei para você há quatro anos, e é doloroso voltar ao assunto, mas desde então, só piorou”, continua. “Para sobreviver, o professor da rede pública tem que trabalhar pela manhã, à tarde, à noite. E ainda leva tarefa para casa, porque tem que preparar plano de aula, corrigir prova, dever. Com toda essa carga horária, ele não tem condições de fazer uma reciclagem. Essa falta de tempo para se dedicar ao seu próprio aprimoramento, que o ajudaria na construção de mais conhecimento, vira um desestímulo para esse profissional. É muito frustrante. Mais do que cansados, eles estão decepcionados. E a decepção abate”, conclui.
“Documento não é conhecimento”
Dona Thereza lembra com saudade e uma ponta de orgulho, de seus alunos adultos, operários, nos anos 1960/70, nos cursos noturnos do antigo Colégio Rui Barbosa (atual Ceje). “Era comovente ver o interesse deles, a ânsia daqueles operários que, mesmo cansados depois de trabalhar o dia inteiro nas fábricas, persistiam em realizar seus sonhos, alimentar ambições. Eles saíam correndo do trabalho, tomavam uma sopa no colégio e iam para a sala de aula. E de manhã cedinho, estavam nas fábricas. O entusiasmo desses alunos me dava uma alegria imensa e nunca me esqueci deles. Agora, que tristeza, o mundo da educação está desabando”.
Essa proliferação de faculdades e cursos, onde pouco se ensina e ainda menos se aprende, resulta nessa enorme quantidade de documentos, “diplomas”, que na verdade não se convertem em conhecimento. Assim avalia a professora. “Antigamente, era o inverso, os alunos tinham real interesse em aprender, tinham sede de saber. E na sala dos professores, nos intervalos das aulas, a troca de conhecimento, de descobertas, de novidades, era estimulante. Hoje em dia, que tempo os professores têm para esse exercício, que disposição se pode cobrar de um grupo de profissionais que se sente tão desvalorizado e desrespeitado? Toda essa situação é desoladora”, comenta.
Apesar de todo esse sentimento de desalento, dona Thereza sente falta do ambiente escolar, de estar rodeada de alunos, de poder falar para eles. “O papo com os colegas, os momentos divertidos que compartilhávamos, até aquele aluno meio malcriado, bagunceiro, de tudo sinto falta. Apesar do cansaço, ao fim de cada aula eu saía feliz, com a sensação de missão cumprida, de ter conseguido passar conhecimento para meus alunos. E quer saber de uma coisa? Apesar de todas os meus ‘por quês’, da minha tristeza em ver o esfacelamento da rede pública de ensino, do descaso dos governantes, eu ainda sentiria imensa satisfação de poder falar para essas novas gerações de alunos. Gostaria de tentar passar tudo que acumulei de experiências e conhecimentos, em meus quase 100 anos de vida”, revela a mestra, que nunca deixou de ser o que sempre foi: uma professora.
E como tal, sua mensagem: “Meu papel é de incentivar, pedir que não desistam, que lutem por uma educação de qualidade, por escolas bem estruturadas, por salários decentes e por um país melhor. Que não deixem de estudar, nem de ensinar. Não cruzem os braços. Um dia, isso vai melhorar, tem que melhorar. Ser aluno e professor devem ser nossos eternos compromissos”.
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