Dalva Ventura
Direito, eles têm, mas só depois de seus familiares brigarem muito e, não raro, recorrerem à Justiça, com inúmeras idas e vindas à Defensoria Pública. Ainda assim, nem sempre conseguem o medicamento de que necessitam e o jeito é comprá-lo. Nem que seja parcelado no cartão de crédito ou com cheque pré-datado, até porque o remédio é caro à beça. Dependendo do estágio da doença, o tratamento pode ficar entre R$ 300 a R$ 500, mensalmente. E a novela se repete, a cada 30 dias, pois a rede de saúde só costuma fornecer os remédios suficientes para um mês.
“É sempre a maior dor de cabeça”, diz dona Nuralda Emerich, que só conseguiu o medicamento de seu marido, portador de Alzheimer, através de medida judicial. Todos os meses ela tem que fazer umas quatro viagens à Defensoria Pública e, muitas vezes, é obrigada a comprar o remédio, pois a autorização nem sempre é liberada logo. Convenhamos, é desgastante e, por isso mesmo, muita gente desiste do processo, mesmo tendo direito, por lei, de receber os remédios de que necessita. E o remédio custa caro: uma caixa com 28 comprimidos, ou seja, que não dá nem para um mês, sai por R$ 388.
Dona Nuralda é uma mulher extremamente batalhadora. Além do marido, de 73 anos, diagnosticado com Alzheimer, ela também tem uma filha de 42 anos com uma epilepsia que deixou graves sequelas e também utiliza medicamentos caros. Vive com dificuldade, com dois salários mínimos e o aluguel de uma casinha no alto de Olaria. Até adoecer, o marido de dona Nuralda, seu Adencruber, trabalhava duro na roça, em Barra Alegre. Mas ele foi ficando cada vez mais esquecido, até chegar ao ponto de não conseguir fazer mais nada. Hoje, aos 73 anos, não se interessa por mais nada. “Ele parece não ouvir o que a gente diz, ficou ausente, estranho”, conta a esposa.
A medicina conta com alguns medicamentos que não curam o Alzheimer, mas diminuem o ritmo de evolução da doença. São os inibidores das colinesterases (Rivastigmina, Galantamina e Donepezil). O único problema é seu custo, fora das possibilidades da grande maioria. Para garantir o acesso da população a estes medicamentos, o Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer incluiu os mesmos, desde 2002, no rol dos chamados “Medicamentos Excepcionais”, isto é, de elevado valor unitário e uso contínuo.
Até aí, tudo bem. Só que na prática a coisa se dá de forma bem diferente. É tudo muito complicado—e a burocracia é tamanha que a maioria dos pacientes, ou melhor, dos familiares dos pacientes, desiste da briga antes mesmo de começar. Então, das duas, uma: ou estas pessoas dão um jeito de comprar, com ajuda da família ou apertando ainda mais o orçamento. Ou, o que é pior, deixa o paciente sem o único recurso que pode evitar a evolução galopante do Alzheimer.
Dona Nuralda conta que chegava a ficar com vergonha de procurar o neurologista de seu marido, doutor Paulo Rosa, pois a cada vez a farmácia vinha com uma exigência diferente. De tempos em tempos, a novela se repete, ou seja, é preciso fazer uma nova solicitação para tentar conseguir o remédio.
Uma luta, enfim, e que luta! Dona Nuralda conta que se cansou de ir do Raul Sertã para o Suspiro, do Suspiro para o Raul Sertã e nada. Até que ela disse: “Bem, eu sei que meu marido tem direito a receber o remédio. Se vocês não estão conseguindo, eu vou é entrar na Justiça”. Dito e feito. Procurou a Defensoria Pública e quatro meses depois, saiu a autorização. Mas foi muito cansativo. Aliás, foi não, é, pois todos os meses a história se repete. No mês passado, atrasou e ela ficou sem saber o que fazer, pois seu dinheiro não daria para comprar.
Vale lembrar que ela também compra os medicamentos para controlar a epilepsia da filha que não são nada baratos. Aliás, já pensa em entrar na Justiça para obtê-los, pois descobriu que tem este direito. “Nunca fiz a conta do que gasto com farmácia, se fizer eu vou me apavorar, então, entrego a Deus e vou levando”, diz, afirmando que muitas vezes fica numa depressão terrível. E nem poderia ser diferente.
“A gente desanima antes de começar”
Cuidar de uma pessoa com Alzheimer já é, digamos, uma tarefa das mais complicadas. Principalmente para quem, como Cristina, trabalha o dia inteiro, é separada e tem uma filha pequena. Ela já vinha percebendo a perda de memória de sua mãe há bastante tempo, mas não deu muita atenção ao fato. Na convivência do dia a dia, porém, viu que a mãe, de 73 anos, estava cada dia mais esquecida, não lembrava mais de coisas importantes que tinham acontecido na vida da família e sua capacidade de raciocínio já não era mais a mesma.
A mãe de Cristina é psicóloga e sempre foi uma mulher dinâmica. Lia, estudava, conversava e entendia de diversos assuntos. “Hoje não sabe mais de quase nada, se surpreende com coisas que faziam parte de seu conhecimento. Ao mesmo tempo, ela tem uns flashes de vez em quando, mas é como se não tivesse mais controle das informações, é muito estranho”, conta.
Quando se deu conta disso, Cristina procurou um médico, ainda acreditando ser alguma falta de mineral ou vitamina no organismo. Marcou uma consulta com doutor Paulo Rosa no posto do Suspiro, que pediu uma ressonância e um hemograma. Ambos não apontaram algo errado. Mesmo assim, o neurologista disse que ela teria de tomar um remédio, o que Cristina logo questionou. Afinal, se os exames estavam dentro do esperado para a idade dela, o que poderia estar causando essa perda de memória e raciocínio?
“O Alzheimer é assim”, informou o médico. No caso da mãe de Cristina, a doença ainda está num estágio inicial, tanto que ela ainda fica sozinha em casa e pega os netos menores na escola. Já nesta primeira consulta o neurologista explicou a Cristina que sua mãe teria de tomar um medicamento fundamental para tentar estacionar ou, pelo menos, diminuir a velocidade da evolução do Alzheimer. Detalhe: Cristina faz questão de enfatizar que a doença vem evoluindo de forma acelerada e, em menos de um mês, já foi possível constatar uma grande piora.
Quando saiu da consulta, Cristina se dirigiu imediatamente à farmácia do posto de saúde. Nada. Resolveu, então, comprar o remédio, ainda sem fazer ideia de seu preço. Na receita, o nome genérico: “Donepezila”. Nas três primeiras farmácias, sequer sabiam que medicamento era. Na quarta, depois de muito procurar e até trazer um remédio errado, consegui apenas o de marca, a um preço absolutamente fora de suas possibilidades. Procurou de novo o doutor Paulo, que lhe indicou onde poderia encontrar o genérico. Custava R$336 e como pagou em dinheiro, conseguiu ainda um desconto de 30%—porém, a partir do segundo mês de tratamento, a dosagem do medicamento dobrará.
Levando em conta o que sua mãe recebe de pensão e o seu salário, Cristina tem consciência de que elas não conseguirão bancar o tratamento. Ela está assustada e perplexa. Quando o médico a informou da burocracia que teria de enfrentar para obter o medicamento, ficou ainda mais desnorteada. Trabalhando em horário integral, separada e com filhos pequenos, sequer deu início ao longo processo que a espera. “Já me disseram que o único jeito de obter o remédio de minha mãe é entrando na Justiça. Será mesmo?”, ela se pergunta. “Isso é um absurdo, uma desumanidade”, desabafa.
Com a palavra, o neurologista
O neurologista Paulo Rosa (foto), da Policlínica Sylvio Henrique Braune (Posto do Suspiro), anda indignado. O custo mensal, em média, dos remédios necessários para combater a progressão do Alzheimer gira em torno de R$ 300 a R$ 600. Ou seja, um preço fora das possibilidades financeiras da grande parte dos pacientes. Tanto que os mesmos são—ou deveriam ser—disponibilizados pela rede pública até porque existe lei garantindo este direito.
Pelas vias normais, porém, as barreiras são quase intransponíveis. O acesso aos medicamentos excepcionais, entre eles, os indicados para a chamada demência senil, se dá através de um processo administrativo junto à Secretaria Estadual de Saúde. Esta solicitação, porém, tem início na esfera municipal.
Segundo Paulo Rosa, é enorme a quantidade de documentos a serem preenchidos, como RG, CPF, comprovante de residência. “Parece que o paciente vai submeter-se a concurso público”, diz. Além disso, precisa apresentar laudo médico, com Classificação Internacional de Doenças (CID), Solicitação de Medicamentos Excepcionais (SME), formulário de testagem cognitiva—que, aliás, tem de ser levado pelo médico, pois o serviço público não disponibiliza—e ainda uma receita atualizada, a cada trimestre.
Como se não bastasse, há os “detalhes burocráticos ridículos”, diz Paulo Rosa, como ter que usar caneta e carimbo de tinta azul nos documentos médicos, por exemplo. O neurologista explica também que a doença de Alzheimer consta em dois grupos na Classificação Internacional de Doenças (CID), o F e o G, mas, recentemente, os órgãos oficiais passaram a não aceitar o código do grupo F, sem que isso tenha sido comunicado aos profissionais. Aliás, diz ele, “nunca tivemos nenhuma reunião com os gestores sobre qualquer assunto referente a estas medicações”.
Também são exigidos alguns exames, como ressonância magnética ou tomografia, para descartar situações que possam mimetizar o Alzheimer, como tumores e hematomas. Vale lembrar, explica o neurologista, que os exames de imagem podem ser normais numa fase inicial, o que não descarta a possibilidade da doença. O fato é que esta exigência complica ainda mais a vida do paciente, pois como todos sabem, não é nada simples fazer os mesmos através da rede de saúde pública.
O ideal é que o medicamento comece a ser administrado na fase inicial da doença, assim que esta for diagnosticada, mas segundo os critérios oficiais, os mesmos só passam a ser disponibilizados para aqueles que já se encontram numa fase avançada. “O poder público não dá a mínima assistência para nós, que avaliamos estes pacientes”, reclama. “Se nós, que somos os responsáveis por cuidar deles, indicamos o uso do remédio, é porque este é importante para deter ou, pelo menos, retardar o avanço da doença”, continua.
Segundo ainda o doutor Paulo, não existe uma equipe para atender a estes pacientes de forma interdisciplinar, composta por neuropsicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Para se ter uma ideia, diz, “há quase um ano montamos o ambulatório para atendimento específico destes pacientes com demência e nunca fomos chamados pelas autoridades para discutirmos esta questão”, declara Paulo Rosa.
Nem todos, portanto, conseguem vencer todas as etapas da burocracia para obter o remédio de que necessitam. Os funcionários do Posto do Suspiro tentam ajudar, assim como os neurologistas que são obrigados a preencher documentos e mais documentos, laudos e mais laudos, avaliações e mais avaliações. Os problemas são na Central de Dispensação da Secretaria Estadual de Saúde, no Rio. “Os prazos são absurdos”, diz o médico, que após a entrega da documentação, os pacientes têm de aguardar pelo menos um mês para saber se ela foi aprovada.
Quando isso acontece, aleluia. O primeiro passo foi dado. Mas ainda será preciso lutar muito para ter sucesso nesta empreitada. Como diz o neurologista Paulo Rosa, “se a pessoa tiver sorte e a comissão de avaliação, no Rio, estiver de bom humor, o medicamento levará em torno dois ou três meses para chegar às mãos dos pacientes”.
Engana-se quem pensa que a partir daí a situação se normaliza. “Inexplicavelmente e com alguma frequência, a medicação atrasa ou não é entregue, descontinuando o tratamento, o que é prejudicial para o controle da doença”. Como não poderia deixar de ser, portanto, os familiares destes pacientes têm muitas queixas e se sentem insatisfeitos com a assistência oferecida pelo programa.
De acordo com a assessoria da Secretaria Municipal de Saúde, o município não tem responsabilidade no fornecimento destes medicamentos, pois este compete ao Estado. Ainda segundo a secretaria, por ser um tratamento complexo e de difícil diagnóstico, o Ministério da Saúde preconiza que os pacientes sejam tratados nos hospitais de referência, todos localizados no Rio de Janeiro: Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Hospital Universitário Antônio Pedro, Hospital Universitário Pedro Ernesto, Hospital dos Servidores do Estado, Instituto de Psiquiatria da UFRJ e Instituto de Neurologia Deolindo Couto.
Convenhamos, não é nada fácil deslocar um paciente com Alzheimer até o Rio de Janeiro para ser avaliado e tratado. Mesmo que pudessem dispor de transporte oficial para levá-los e trazê-los. O que, aliás, é considerado um absurdo pelos médicos daqui. “Como aceitar que os pacientes sejam encaminhados para o Rio se temos profissionais com capacitação para fazer o diagnóstico aqui?”, questiona o neurologista.
Com tudo isso, não é de estranhar que muitos acabem recorrendo à Justiça em busca de seus direitos. “Aí, quem paga é o município, o que é um desperdício do dinheiro público, já que temos um programa custeado pelo Estado”, diz Paulo Rosa. A cada dia, aumentam as demandas judiciais, até porque a incidência da também chamada “demência senil” vem crescendo exponencialmente, já que a população de idosos tem crescido.
O doutor Paulo Rosa destaca que todos os especialistas que têm como recurso terapêutico medicações de alto custo passam pelos mesmos problemas. “Não temos culpa se a medicina evoluiu. Saúde é caro e é o maior bem que temos. O que não pode acontecer é fazermos vista grossa e não trazer estes avanços para o usuário do SUS. Até porque, estas medicações podem prevenir outras doenças, reduzindo, inclusive, as internações e diminuindo, assim, os custos do tratamento para o poder público.”
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