O dia do fim
Priscilla Franco
Tudo parecia exatamente igual naquele dia: os mesmos compromissos urgiam, o despertador tocava insistentemente lembrando as horas, de novo e de novo. O mesmo café, o mesmo pão, as roupas de sempre. Mas lá dentro latejava a sensação de que alguma coisa estava fora do lugar.
Essa angústia... seriam as contas? Dívidas têm um incrível poder de deixar o coração apertado, pelo menos de quem não consegue gastar menos que ganha. Os estresses do trabalho continuavam os mesmos, mas a saúde estava perfeita, tirando por um problema ou outro que não tive tempo de contar ao médico.
Enquanto repassava mentalmente as coisas que me afligiam, pela janela do carro vi um dia claro e ensolarado. Se o tempo continuasse firme faria um passeio no fim de semana, quem sabe tomar um banho de cachoeira, algo que venho adiado há décadas. Mas nem programar um dia de descanso tirou de mim aquela sensação ruim.
Revirei a agenda em busca de um sinal. Percebi que havia esquecido uma consulta no dentista, de buscar a cafeteira no concerto e do encontro de ex-alunos do colégio. Nenhuma dessas lembranças levava embora a angústia. Havia um problema maior por vir, muito maior.
A intuição se confirmou em um clarão que iluminou ainda mais o dia. De repente, havia incêndios por toda parte, uma cena aterradora, apocalíptica. Sim, era essa a palavra! O mundo acabava e levava com ele a minha dúvida: aquela angústia dentro de mim era isso, a proximidade do fim!
Sempre quis saber o que uma pessoa pensava na iminência da morte. Eu pensei nas viagens que não fiz, nos filhos que não tive, no curso que não completei, na última ligação que não deu tempo de realizar. Pensei que não haveria fim de semana ou cachoeira. Nunca mais.
E assim, quando o mundo parecia prestes a conhecer seu fim, transformando minha vida em poeira de estrela, em vez de fechar os olhos eu os abri. Pude então ouvir o despertador tocar, insistentemente, lembrando as horas de novo e de novo.
LER, VER, OUVIR
João Clemente
Ler: Nikos Kazantzákis é conhecido por ser o autor do clássico “Zorba o Grego”, romance de inspiração nietzschiana cuja adaptação cinematográfica fez jus à sua grandiosidade. Kazantzákis também escreveu um livro não tão popular, mas igualmente brilhante: “O Cristo Recrucificado” (1948). Logo pelo título, não é preciso dizer que se trata de uma obra polêmica. Conta a história de uma pequena aldeia da Grécia, que tem a tradição de encenar a via-crúcis durante a Semana Santa, assim como aqui no Brasil, só que de sete em sete anos. Os mais velhos da aldeia escolhem quem vai interpretar os personagens. Aquele que for escolhido para Cristo deve ser uma pessoa que se pareça fisicamente com Jesus, mas também de moral elevada, à altura do papel que ele deve desempenhar. Quiseram os anciões e o destino que o escolhido fosse Manolios, um jovem pastor de ovelhas que já havia vivido num monastério. Ele se engaja, sobe uma montanha para rezar, busca levar a vida como o próprio Cristo, assim como lhe foi designado. Quando então chegam refugiados famintos da aldeia vizinha, Manolios é o único que parece disposto a “acolher o próximo”, e bate assim de frente com a hipocrisia, o egoísmo e a mesquinhez dos moradores da aldeia. O fim eu não vou contar, mas o título dá a dica.
Ver: “Coconut Revolution” (2001) é um documentário que apresenta uma história tão incrível que só mesmo vendo para crer. Numa pequenina ilha do Oceano Pacífico, Bougainville, vive uma população que resistiu por longo período ao exército de Nova Guiné, que tentava anexar a ilha ao seu domínio político e econômico. E Bougainville findou vencendo, usando táticas de guerrilha com armas velhas ou confeccionadas por eles mesmos. Como se não fosse um feito notável o suficiente, os nativos conseguiram ainda expulsar uma mineradora inglesa do seu território. Com o bloqueio econômico imposto à ilha, os habitantes tiveram de improvisar e com isso alcançaram soluções consideradas hoje “ecologicamente amigáveis” para suprir sua demanda de energia, como moinhos de água para gerar eletricidade e óleo de coco para abastecer os veículos.
O filme está disponível no YouTube, com legendas em português.
Ouvir: Em música, se você tem algo a dizer e quer fazer isto chegar ao coração das pessoas, você precisa de uma boa melodia. Esse é o trunfo de Paulinho da Viola, que está na ativa desde 1965 e que completou 70 anos de vida no último dia 12 de novembro. E seu talento não está relegado somente ao passado, como podemos conferir no relativamente recente “Bebadosamba” (1997), uma joia de 14 canções inéditas. Destaque para “Ame”, “É difícil viver assim” (minha favorita do disco) e “Memórias conjugais”, que mesmo sendo um ritmo bastante antigo, o maxixe, tem curiosamente em sua letra elementos bastante contemporâneos, como por exemplo: “Depois dessa, fui em busca do meu antidepressivo e afundei no sofá com meus jornais”.
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