Quando você foi embora, eu tinha um pé de avenca que só faltava falar, de tão presente e viva. Morreu, ninguém sabe como aconteceu, murchou, secou, feneceu. Aliás, como tudo em volta, depois que você me disse adeus.
Quando eu fui embora você botou minhas violetas no sol e na chuva, para que eu nunca mais confiasse um fiapo de vida minha aos seus cuidados. Você deixou bem claro: não te amo mais. Recado lido nas orquídeas assassinadas.
Tolice pensar que o amor vive de amor, se nutre de si mesmo e anda com suas próprias pernas. O amor ora se nutre da seiva das orquídeas, ora ressuscita em fotografias esquecidas, ora pede licença para se recolher e morrer, ora não pede desculpa nem perdão, ora morre mesmo, como as avencas.
Quando você me achou, porque foi você, não eu, que viu primeiro a paixão, eu tinha uma tigresa e um carneiro, três cabritinhos, quatro gatos e tinha acabado de deixar para trás dois cães – incompatíveis com o condomínio do edifício em Ipanema. A tigresa entrou dormindo, nos meus braços, como uma criança (que era) a mais, entre as nossas três. Só depois de quatro meses é que os rumores deram conta de que uma jaguatirica tinha-se atirado do quinto andar. Não morreu. Quebrou as pernas traseiras, que foram engessadas e nunca mais ficaram boas. Foi quando eu fui embora. Ela pulou pela janela a ver se me encontrava onde você não.
Quando eu fui embora você jogou o corpo morto, com pêlo e tudo, da tigresa, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Eu a teria empalhado, para nunca esquecer a dor de um amor que se acaba.
Quando você me deixou eu nem notei, tão apaixonada que estava pela siamesa da vizinha, ainda magoada com a perda da tigresa, reinventando uma maneira de ser feliz no Rio de Janeiro.
Quando você foi mesmo embora, estacionei o carro no vão central da ponte Rio-Niterói e imaginei o vôo numa manhã de sol, braços abertos sobre a Guanabara. Foi quando percebi que não era você, era eu quem estava indo embora! Então voltei ao carro, estacionei no Aeroporto Tom Jobim e cantei “minha alma chora, deixo o Rio de Janeiro”. E deixei mesmo.
Nunca mais chope na Cinelândia com parada no relógio da Glória para tomar um arzinho, na verdade fumar unzinho, andando a pés para o Catete. Nunca mais brioches da padaria Flor das Laranjeiras. Nunca mais matinês nos cinemas do Largo do Machado e esfirras na lixonete Flor da Síria. Nunca mais encontrar Mano Melo e Moacy Cirne e Tanussi Cardoso e Leila Miccolis e Celinha Moleque e Graça Medeiros e Sérgio Bernardo no Bar do Manolo na esquina da Rua Bambina em Botafogo. Nunca mais sol na pracinha da Pires de Almeida. Nunca mais Luanda, África de Rio 40 graus.
Quando eu vim embora, trouxe tudo de bom guardado num chip que tenho aqui no meu Oi, você se lembra? Pois não direi o seu nome. Só quero dizer que as avencas brotaram não sei de onde, no meu quintal, que agora é jardim. Sendo assim, pelas violetas violentadas e orquídeas assassinadas, você não me deve mais nada. O grande perdão das avencas veio confirmar que amor, quando não é pra sempre, nunca acaba.
Ilma Fontes - Aracaju, Sergipe (publicado originalmente no jornal ‘O Capital’)
Anotação ao pé da página: É como se eu tivesse pago uma promessa que nunca fiz, um castigo que não identifico, mas me desobrigo do ódio, do ressentimento e do esquecimento. Posso viver na paz das avencas, com os “deuses que moram na proximidade do haver avencas”.
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