Ora, a lei ...

terça-feira, 04 de agosto de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

São muitos os exemplos de atitudes brutais e cruéis em toda espécie de relação social. Mulheres que são espancadas por seus companheiros, abuso sexual de crianças, atos de violência política. Este último quesito volta e meia é ilustrado por algum chefe político de alguma parte do mundo. As monstruosidades praticadas por gente como Adolf Hitler, ditador da Alemanha entre 1933 e 1945, juntamente com seus parceiros políticos, talvez sejam as mais emblemáticas desse atributo humano que é a violência no poder político.

Também são humanos os responsáveis pela morte de Conrado Sichel, no último dia 22, na praça Getúlio Vargas, no centro de Nova Friburgo. Alexandre Soares de Lima, 26 anos, e Alexandre Emílio de Almeida, de 35, têm histórias de vida que os fizeram do modo como são. Para se evitar que outras pessoas tornem-se o mesmo que esses dois alexandres é preciso compreender o processo como eles se formaram. Não para desculpá-los ou justificá-los, mas para evitar os caminhos que compuseram esses personagens, a vida social que os gerou. Pois eles são produtos de uma vida social e cultural. Não me refiro à pobreza. Não é ela que leva pessoas a se tornarem cruéis e terem tamanho descaso pelo outro ser humano.

Alexandre de Lima teria convidado Alexandre de Almeida para a empreitada de virem juntos a Nova Friburgo, a fim de praticar alguns assaltos. Curioso o verbo convidar. É o mesmo que poderia ser usado por um profissional que propusesse a outro um serviço em comum. Digamos que fossem dois eletricistas, por exemplo. Um poderia dizer ao outro: “vamos a Itaboraí porque as obras do complexo petroquímico devem abrir espaço para nós; haverá muitas instalações elétricas”. Como terá sido formulado o convite de um alexandre ao outro? “Vamos a Nova Friburgo porque lá tem muito mané andando na rua com dinheiro; vai ser fácil fazer um ganho”: terá sido assim? As duas frases têm a mesma estrutura e ambas tratam de possibilidades de mercado ... de mercado de trabalho. As ações dos eletricistas e dos assaltantes podem ser consideradas ambas como trabalho. Tanto em um caso como em outro, há dispêndio de energia para se atingir um fim, de acordo com um planejamento.

Mas, é claro, há diferenças entre esses trabalhos. Os eletricistas, em primeiro lugar, investiram esforços e tempo para aprenderem o ofício. Depois, passaram a tentar exercer a profissão, que, antes mesmo de ser definida por lei, cria um bem útil, a instalação elétrica. Os assaltantes, pode-se até dizer que também aprenderam um ofício, mas este não gera valor para a sociedade, ao contrário, fere-a. E por este motivo, é moralmente condenável e está fora da lei. Ou seja, a diferença pode ser vista, em primeiro lugar, por ser atividade que faz um bem à sociedade, ou tratar-se ação antissocial. Em segundo lugar, como consequência, pela maneira como a lei define essas atividades. No primeiro caso, vai regulamentar o trabalho, no segundo vai defini-lo como crime.

O sociólogo Norbert Elias (1897-1990) analisa o processo que levou o Estado a monopolizar o direito ao exercício da violência física, através de instituições como a polícia e as forças armadas. Ele diz que, nesse processo, há uma correspondência entre a mudança da relação social e a vida interior do indivíduo. Este traz para dentro de si o controle de seus impulsos violentos, que em outra sociedade poderiam se expandir livremente. As disputas que faziam uso da violência física passam para o interior do indivíduo sob formas simbólicas e o resultado é a adaptação do indivíduo às normas de conduta aceitas pela sociedade. Assim se caracteriza o que Elias chama de processo civilizador.

Se a prática da transgressão faz parte de uma maneira atual do indivíduo lidar com o outro, talvez, nesta época que vivemos hoje, este processo de o indivíduo levar para dentro de si as normas esteja se revertendo, o que seria o oposto do processo civilizador.

No jogo de empurra que acontece hoje no Senado, um senador do PMDB ameaça o PSDB de representar contra o senador deste partido que admitiu publicamente ter transgredido uma norma, caso a liderança do partido insista em denunciar as falcatruas de outro senador do PMDB. O descaso com o que é definido como certo ou errado na lida com a sociedade é gritante. É como se um senador dissesse ao outro: “fica quieto, não aponta meus erros e eu não falo dos teus”. E, assim, institui-se o descaso com a lei como norma de conduta.

É claro que um homicídio em uma praça pública de uma cidade é algo mais chocante. As tramoias comuns entre os políticos, onde fazer um ganho é normal, podem até ser aparentemente menos graves, o que é discutível, e terem penalidades diferentes. Mas, tal como no caso do assassinato, a tramoia política é uma transgressão que institui o desrespeito à lei, com desdobramentos e danos cuja extensão é difícil medir.

E o nosso senador, caso lhe fosse lembrado este fato, poderia abrir os braços e, com espanto, em tom de escárnio, dizer: “A lei? Ora, a lei ...”

(*) Jornalista - mauriciosiaines@gmail.com

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