Eu adoro a França, incluindo a história, a língua, e a exception culturelle française, termo lembrado pelo historiador Tony Judt. Os amigos que dividem mesas comigo sabem que, depois de alguns chopes, invariavelmente eu faço “um brinde à Revolução Francesa, que inventou este mundo em que a gente vive”. Por este interesse, faz menos de dois anos voltei para um breve período em Paris. Numa opcional viagem solitária - na qual troquei minha passagem e desgarrei-me de amigos em Madri —, passei alguns dias andando à toa pela Cidade Luz, bebi, comi, fui a museus, e fiz boas caminhadas à esmo degustando cigarrilhas e observando detalhes e marcos da cidade. Cheguei mesmo a arriscar alguns flertes - infelizmente sem sucesso — e, quando voltei, matriculei-me em aulas de francês que, mais pela preguiça e menos pela falta de tempo, acabei abandonando.
Verdade é que a França é a mãe do nosso modo de vida. Pois, se os ingleses fizeram a Revolução Industrial que moldou as formas de produzir, e os norte-americanos deram dimensão ao capitalismo, a Revolução Francesa moldou o espírito do nosso tempo e deu-nos a Declaração Universal dos Direitos do Homem e um dos lemas mais conhecidos pelas sociedades democráticas: “Igualdade, liberdade e fraternidade”. O saldo é trata-se de um país dos mais poderosos do globo, uma potência econômica, política e militar, e um dos pilares do Ocidente.
Contudo, para alcançar esta posição de país protagonista, a França bebeu em fontes pragmáticas e violentas, antagônicas ao espírito justo e igualitarista que sua democracia tenta passar ao mundo e à História. Ao longo do século 19 e 20, promoveu a barbárie e exploração através da colonização, chegando a ocupar a maior parte da África Ocidental, a infligir ao Vietnam a guerra da Indochina (1946-1954), e a cometer os mais bárbaros crimes de guerra no combate à independência argelina (Guerra da Argélia, 1954-1962).
Mais recentemente, nos conflitos do Oriente Médio, os franceses firmaram uma notável posição internacional ao não apoiar os EUA na invasão ao Iraque em 2003. Mas, inevitavelmente, envolveram-se nos conflitos da Síria. Este envolvimento das grandes potências em conflitos alheios, muito além das razões humanitárias, envolve as necessidades perenes de expansão do capitalismo pela violência.
Os atentados terroristas na França, que aconteceram agora e mataram pelo menos uma centena de pessoas, foram horríveis, emocionantes e condenáveis. São injustificáveis. Mas, no mínimo, significam um preço que um país paga por firmar-se e manter-se como potência numa ordem geopolítica que, a despeito das aparências, é cada vez mais desigual. A considerar o desenvolvimento social, tecnológico e econômico dos países centrais, nunca o mundo foi relativamente tão desigual. Isso que aconteceu é menos uma guerra santa de bárbaros contra civilizados, e mais uma disputa geopolítica. Nosso ocidentalismo, forjado e mantido a condições históricas de opressão e expropriação, é o grande alvo do mundo não ocidental.
A esperança é que, ao longo dos próximos 30, 40 ou 50 anos o mundo caminhe para um novo arranjo geopolítico, de preferência menos desequilibrado. A China certamente terá papel nessa nova conformação. Quem sabe o Brasil também tenha um papel relevante num novo mundo para as próximas décadas, contribuindo com valores como sua etnodiversidade e sua criatividade?
Para encerrar, uma observação: há algumas semanas caiu o avião russo na península do Sinai, deixando um saldo de 217 mortos. Suspeita-se fortemente que a aeronave foi derrubada pelo Estado Islâmico (EI), o mesmo grupo jihadista que é responsabilizado pela série de ataques terroristas que mataram pelo menos 132 pessoas em Paris. A comparar a diferença de coberturas jornalísticas e mobilização internacional, há de se perguntar por quê o assassinato de 129 pessoas na França comove mais do que o assassinato de 217 russos?
Rodrigo Garcia é mestre em ciência política pela UFF, e professor universitário. rodrigo7garcia@yahoo.com.br
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