“O MP e a imprensa livre são frutos da democracia”

Procurador do Trabalho Jefferson Rodrigues detalha as competências do MP, explica as funções dos TACs e enfatiza a importância da democracia
sábado, 24 de novembro de 2018
por Marcio Madeira (marcio@avozdaserra.com.br)
“O MP e a imprensa livre são frutos da democracia”

AVS: Como o senhor explicaria a um leigo quais as competências dos Ministérios Públicos?

Jefferson Rodrigues: O Ministério Público (MP), em geral, e o Ministério Público do Trabalho (MPT), no particular, são reinventados com a redemocratização do país, com a Constituição Federal de 1988. Isso não significa, por exemplo, que o MPT não existisse, antes de 1988. E sim que as suas funções receberam um novo papel e impulso pelo Constituinte, o que se revelou importante para a atuação do MP, tal como hoje se observa. Essa metamorfose institucional, digamos assim, também ocorreu com o MPF que, antes, era um órgão de defesa da União. E também com os MPs Estaduais, que passaram a ter um grande papel na defesa do patrimônio público, da tutela coletiva, da criança e adolescente, do meio ambiente natural, etc.

Falando especificamente sobre o Ministério Público do Trabalho, onde começa e onde termina sua responsabilidade? Quais as áreas de atuação, e ocorrências mais comuns em sua rotina?

O MPT, de acordo com que internamente se constrói em seu novo planejamento estratégico, tem como perspectiva se afirmar como uma instituição promotora do trabalho digno e do desenvolvimento social sustentável, o que traduz importante vetor constitucional e uma efetiva necessidade da sociedade brasileira. Nesse caminho, para uma melhor coordenação de suas atividades, estão estruturadas oito áreas temáticas, com objetivos que podem ser resumidos da seguinte forma: 1) Combate ao trabalho infantil e a regularização do trabalho do adolescente. 2) Erradicação do trabalho em condições análogas às de escravo. 3) Promoção da igualdade de oportunidade, o que implica o combate à discriminação (mulher, negro, homossexual, etc); a inclusão nos ambientes de trabalho da pessoa com deficiência ou reabilitada; e a proteção da intimidade dos trabalhadores. 4) Combate às fraudes à relação de emprego. 5) Defesa da higidez do meio ambiente do trabalho. 6) Implementação da legislação trabalhista nos portos. 7) Defesa da liberdade sindical e a pacificação dos conflitos coletivos do trabalho. 8) Combate às irregularidades trabalhistas na Administração Pública. O MPT atua amplamente em uma perspectiva que se pode chamar de “tutela coletiva”. Quando um trabalhador denuncia que o seu empregador não lhe fornece um meio ambiente do trabalho seguro ou está colocando em risco a sua saúde, a sua integridade física ou a sua própria vida, a atuação do MPT não é sob a perspectiva de tutela daquele trabalhador em específico, mas sim para a regularização daquele meio ambiente do trabalho, o que traduz benefício para todos os empregados coletivamente considerados, atuais e futuros e também. E à sociedade que, no fim das contas, paga o preço desses acidentes, dessas doenças. Apenas para se ter uma ideia do desafio, estudos apontam que 2,5% do PIB são consumidos por atos de corrupção, ao passo que os acidentes do trabalho consomem 6,0% do PIB nacional. Nessa trajetória, a atuação do MPT é de interesse também do próprio empresário que cumpre, corretamente, com a legislação trabalhista. À medida que o MPT atua para combater, por exemplo, uma fraude à relação de emprego (o que gera “lucro ilícito” com a economia indevida pela fraude), ele está a resguardar o próprio equilíbrio do sistema capitalista, da livre concorrência. Do contrário, aquele “mau empresário” teria condições, com a redução indevida de seus custos, de reduzir o preço de seus produtos e assim obter vantagem injusta em um sistema produtivo que é altamente competitivo. A perspectiva, portanto, é que a produção de riqueza, pelo capital, seja também um instrumento apto a gerar o desenvolvimento social sustentável, com a valorização da dignidade da pessoa humana através do respeito ao trabalho formal, digno e decente.

Quem pode procurar o MPT, e sob quais circunstâncias?

Todos queremos prosperidade ao agronegócio, à construção civil e indústria, enfim. Mas não que essa produção de riqueza seja às custas, por exemplo, do trabalho em condição análoga à escravidão. Portanto, todos podem encaminhar denúncia ao MPT, requerendo o sigilo de sua identidade, se necessário for, mas cientes que a atuação do órgão, em regra, não se adequa a uma tutela individual do trabalhador, e sim é impulsionada por um olhar que prime pelo resguardo dos interesses ou direitos coletivos mais caros à sociedade e afetos ao mundo do trabalho.

Parte da OAB e muitos políticos têm feito críticas à utilização de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), falando, inclusive, sobre usurpar competências de outros poderes, em especial o Executivo. Nesse contexto, quais são os princípios que amparam o emprego desta ferramenta?

O TAC tem previsão legal e também em diversas resoluções dos MPs, sendo um instrumento de superação do conflito pelo diálogo. O MP tem o dever jurídico de agir quando conclui, em sua investigação, que há ilícito cometido por um dado investigado. Nessa perspectiva, abrem-se dois caminhos. O primeiro, que é privilegiado na atuação do MPT, busca-se ao máximo o acordo, um consenso a respeito do tema tratado. Nesse caso, firma-se um TAC ou, como se diz modernamente, um Compromisso de Ajustamento de Conduta pelo investigado. Diante dos fatos que lhe são apresentados, o investigado opta por assumir um compromisso de adequar a sua conduta, de corrigir a sua conduta na forma e no tempo consensualmente acordados com o MP, e os termos desse acordo faz-se por escrito, formalizado, nesse documento denominado TAC. Poderia o investigado optar por não assinar o TAC? Sim, claro! Nesse caso, segue-se o segundo caminho que é mais demorado, mais custoso, além de não raramente desagradar um ou outro – e às vezes a ambos – que é a discussão judicial. Quando aqui se chega é porque houve uma incapacidade do MP e da parte em solucionarem consensualmente a questão. A primeira conclusão a que se chega, portanto, é que a assinatura do TAC é uma opção, uma manifestação livre de vontade. Não é uma obrigação tanto do membro do MP quanto do investigado. O TAC é firmado, a bem da verdade, porque ambos têm interesse nos termos ajustados. Ora, se o TAC é uma opção e a matéria tratada tem como objetivo solucionar uma questão então debatida, não há de se falar em invasão de competência.

A realidade friburguense está em harmonia com esses princípios?

Sim, os TACs firmados com o Município de Nova Friburgo retratam bem isso. Podemos exemplificar com um dos itens mais publicizados, o dos cargos em comissão. O Município regula os seus cargos em comissão, o que é de sua competência e ninguém discute. Ocorre que a Constituição diz a que servem os cargos em comissão. O MP, por sua vez, detecta que há desvirtuamento, pelo Município, na utilização dos cargos em comissão, pois são ocupados para suprirem a contratação de servidores efetivos. O TAC é um documento que estipula os termos do consenso e no sentido de que em determinado tempo e modo essa conduta venha a ser corrigida. No caso, reduzindo-se os cargos em comissão e chamando os servidores concursados a ocuparem essas funções, que são uma necessidade do próprio Município. Houve invasão de competência? Obviamente que não! O que houve foi um diálogo maduro do MP e do Município para solucionarem uma demanda que, na realidade, não pertence a nenhum dos dois exatamente, mas interessa à própria sociedade friburguense. No caso do Município de Nova Friburgo, aliás, há um grupo de trabalho formado por servidores municipais altamente qualificados e que, antes e com muita responsabilidade, discutiu e continua discutindo os termos dos acordos com MPT e o MPF. Ademais, os TACs foram firmados após a análise minuciosa do próprio corpo jurídico do Município. Da mesma forma o TAC das terceirizadas. Detectou-se que não existia fiscalização efetiva das empresas contratadas, o que contraria a lei e ainda gera perda de recursos e eficiência à Administração Pública, além de prejudicar os trabalhadores terceirizados. O TAC trilhou um caminho para que a norma venha a ser cumprida. Já o TAC das organizações sociais, firmado com o MPT e MPF, representou uma nova compreensão do tema, no cenário jurisprudencial atual, sendo destacado, em cláusulas, diversas medidas previstas em lei e que resultaram de decisões de Tribunais de Constas, conjugando a tutela dos trabalhadores e do patrimônio público. Tudo, enfim, foi amplamente debatido com os técnicos do Município de Nova Friburgo. Evidentemente que uma atuação inédita e conjunta do MPT e do MPF na cidade e que veio em boa hora combater uma trajetória histórica de irregularidades trabalhistas e, ademais, consensualmente estipular instrumentos que estabelecem maior grau de probidade, de transparência e de combate à corrupção, na Administração Pública, iria encontrar resistência e críticas de alguns setores atingidos, sobretudo aqueles em que suas práticas passam a ser obstadas a partir de então. Não sejamos ingênuos. Mas o importante, obviamente, é que sociedade friburguense vislumbrou como positiva a iniciativa e todos certamente esperam, uma vez cumpridos os termos dos acordos, que em médio prazo os frutos já possam ser colhidos. Em breve apresentaremos um balanço dessa primeira etapa.

O MP tem se engajado bastante no combate a corrupção, e as 10 medidas recentemente propostas à sociedade são exemplo concreto disso. Nesse sentido, qual a visão do senhor a respeito da importância da publicidade dos atos, e da própria atuação da imprensa? Onde podemos ajudar, onde devemos melhorar?

Neste ano, no dia 5 de outubro, o País completou 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Uma Constituição detalhista, que sofreu, não obstante, ao longo de sua trajetória, diversas modificações, mas extremamente importante, ainda hoje, como um vetor jurídico e político para a construção de uma sociedade menos desigual e que respeita os direitos fundamentais e a própria dignidade da pessoa humana. Muito embora parte da sociedade brasileira esteja acometida por um sentimento histórico pessimista, fato é que o Brasil de hoje é muito, mas muito melhor que há 30 anos. Não sou eu quem digo, mas todos os índices sociais e humanos. O MP é fruto da democracia. A imprensa livre é fruto da democracia. A livre manifestação do pensamento, e que hoje fomenta as redes sociais, é fruto também do sistema democrático.

O senhor falou sobre conciliação, correção de conduta, resolução de conflitos. A partir de sua experiência, quais os recados que o senhor gostaria de dar à sociedade friburguense, falando em nome do órgão ou de suas disposições pessoais?

O primeiro recado que deixo, por observar manifestações públicas de desprezo à democracia, com opiniões às vezes proferidas de forma raivosa por jovens brasileiros e pelo retorno de um regime de força, é que efetivamente venham a refletir a respeito. Não há atuação do MP, como hoje se observa e se aplaude, se não em um sistema democrático. Não há imprensa livre e apta a denunciar ilicitudes, inclusive quanto a casos de corrupção, se não no sistema democrático. Não há instrumento apto a se aferir, aprovar ou reprovar o ingresso em cargos políticos, pelo voto, se não com o sistema democrático. É ingênuo acreditar que a corrupção é fruto do sistema democrático. Pelo contrário, o fortalecimento do sistema democrático é que se revelou como fundamental para a mudança dessa realidade tortuosa. Não fosse a democracia, não haveria MP para atuar ou muito menos imprensa livre para denunciar e expor nossas mazelas, ou ainda a livre expressão da opinião a respeito de agentes públicos nas ruas ou nas redes sociais. A segunda e última reflexão que apresento é que, talvez em razão das diversas notícias acerca de envolvimento de políticos em desvios ou casos de corrupção, houve uma espécie de demonização da política que, ao final, revela-se extremamente nociva ao país. Não há solução para as nossas mazelas, se não pelo debate político. Fora da política, não há saída se não pela força, pela barbárie. Muitos cidadãos friburguenses reclamam, mas quantos já se deram ao trabalho, por exemplo, de assistir pelo YouTube, no celular, à TV Câmara e observar como se comportam os parlamentares? Como votam? Fiscalizam, efetivamente, o Poder Executivo? Comparecem? É um erro generalizar os políticos, os partidos, como se estivéssemos compondo, enquanto sociedade, torcidas de futebol. Quem torce também distorce e não enxerga a realidade. É equivocada essa ideia de taxar determinados partidos de corruptos ou honestos, ou atribuir a propriedade da honestidade a determinado viés ideológico, pois deixa em segundo plano as propostas, o que se pretende enquanto sociedade. A sociedade brasileira precisa acompanhar mais. Evidentemente que também na classe política existem pessoas que trabalham e se empenham para a construção de uma sociedade melhor. A grande questão é que as pessoas têm que ser, efetivamente, os verdadeiros vetores da mudança que elas tanto reclamam ou esperam. Não existem salvadores ou heróis. Não há como acabar com a corrupção se o cidadão trocar o seu voto, seja por um saco de cimento, um jogo de camisa de time de futebol, um “carguinho” em comissão na prefeitura ou um privilégio fiscal para a sua empresa. Não há como reclamar pelo fim aos desvios ou da ineficiência dos serviços públicos se você ladeira a lei para lograr um benefício indevido, frauda direitos dos seus empregados para produzir com menor custo e superar o seu concorrente, “cola” na prova de sua faculdade ou no colégio para obter uma nota que, sem tal artifício, não atingiria, ou pergunta ao cliente, ao final da compra ou do serviço, se ele deseja a notinha. E isso quando se sabe que é dever legal emitir a nota fiscal para se contabilizar e recolher o tributo respectivo. Portanto, eu concluo dizendo que a construção da sociedade friburguense que desejamos perpassa pelo comportamento de cada um de nós. Se efetivamente pretendemos mudar a sociedade, sejamos, de verdade, o instrumento de transformação de nós mesmos.

 

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