Ao pesquisar material para produzir uma edição dedicada à questão da falta de tempo, da correria e angústia que atormenta as pessoas nesses tempos de fúria, me surpreendi com a fartura de artigos sobre o tema. O que soou para mim como uma clara demonstração da relevância do assunto, bem oportuna para o momento que estamos vivendo. E pensei: Preciso ouvir um psicólogo. No mesmo instante lembrei que temos aqui no jornal, ao nosso alcance, um mestre em psicologia, formado pela PUC-Rio. E, para ficar ainda mais interessante, um psicólogo que é músico, o que lhe confere uma sensibilidade extra para as coisas loucas da vida contemporânea. Esse colega, cuja companhia temos o privilégio de desfrutar diariamente, se chama João Clemente. Reticente no início, ele acabou cedendo aos meus argumentos e discorreu com sabedoria e clareza sobre uma questão complexa. Vale a pena conhecê-lo, ouvi-lo, e atentar para suas observações.
Light – Para início de conversa, como você vê a passagem do tempo?
João Clemente - Tempo é o que há de mais crucial na vida. Ele traz a noção de que as oportunidades surgem e desaparecem, e de que as coisas são finitas, incluindo aí a própria vida. Quando se é jovem tem-se a sensação de tanque de combustível cheio, não se sente muito a urgência da vida (embora saibamos que adolescentes de 19 anos já se lamentam por se sentirem velhos... Isso é bem relativo). A questão é que a vida para a juventude é um imenso projeto futuro. Todos os sonhos são realizáveis. Quando a pessoa fica mais velha, aí começa a sentir o peso, o passar dos anos, e vê que nem tudo o que sonhou pode acontecer, e começa a correr atrás do tempo perdido... É quando surgem pensamentos como “se eu fosse jovem com a mente que eu tenho hoje...” O importante em tudo isso é nunca se fechar para o futuro, porque se você ficar só nas memórias e no passado, você só vai ver o mundo a sua volta ser destruído... Flores e crianças estão sempre nascendo... É como diz a canção: “O novo sempre vem”.
Por que, nos dias atuais, temos a sensação de que o tempo está encurtando?
A vida atual, embora seja difícil fazer uma comparação com tempos passados, é tida como rápida, isso meio que virou uma expressão popular. Eu não posso afirmar com certeza que o tempo está encurtando. Na verdade, eu não sinto isso. Mas talvez, quem sabe, seja a quantidade de coisas que fazemos num dia que dê essa impressão. Em relação a isso, nós sabemos que a tecnologia não nos trouxe mais tempo livre; e pode-se dizer mesmo o contrário, que temos menos tempo por causa dela. O essencial do argumento, na verdade, é: em que tipo de sociedade estas tecnologias funcionam? A nossa, atual, é de otimização, de majoração das forças do ser humano — isso o mundo cobra da gente, a gente cobra dos outros, a gente cobra da gente mesmo. Esse paradigma, muitos pensam que é algo natural da vida em sociedade, mas, na verdade, foi historicamente construído.
Poderia ser de outra forma?
Poderia ser diferente, sem dúvida. E o acúmulo de funções e o corre-corre, obviamente, cobram seu preço psíquico. Muitas vezes chegamos em casa com “tempo livre” mas sem qualquer energia para fazer coisas. Estamos esgotados. Vemos uma série boba na TV ou na internet, comemos comfort food e vamos dormir. É algo muito triste, se você parar para pensar. E também essa cobrança por aperfeiçoamento constante, de ser cada vez melhor, e isso nunca ser o suficiente, criou uma legião de deprimidos.
Nas ruas, calçadas e carros, restaurantes, consultórios e escritórios, e em tantos outros espaços, a cena é comum: todo mundo de cabeça baixa, esquecido do mundo, olhando a telinha dos celulares, tablets, smartphones... Por que isso?
Pois é... a questão dos celulares e demais apetrechos. Veja bem, não sou contra a existência e o uso deles... Mas em um mundo cheio de angústia como o nosso, virou um escape fácil. Hoje, se você está esperando alguém, você pode se distrair com o celular, o mesmo enquanto aguarda ser atendido pelo dentista ou até num jantar de família. Relacionar-se com pessoas às vezes é um desafio, e podemos não encará-lo, checando as coisas no celular. Esses apetrechos cheios de recursos podem “calar” a reflexão, e o tédio também. Esperar alguém e enquanto isso refletir sobre a vida é uma coisa muito boa. Assim como o tédio é importante. O tédio movimenta a gente, faz a gente buscar alternativas e realizar coisas.
Estamos ficando neuróticos?
Vamos lá. Muita coisa mudou nos dias de hoje, mas muita coisa também é a mesma desde cem anos atrás. Mesmo com todo o tempo livre do mundo, a gente adia as coisas, “deixa pra amanhã”. Se você sente isso, saiba que é um comportamento mais comum do que se imagina. Isso tem uma explicação psicanalítica, que eu posso abordar de maneira um tanto simplória aqui, mas que creio que por causa disso mesmo pode ajudar a dar uma ideia da questão. A neurose, sob certo ponto de vista, é a dificuldade em administrar os desejos. Angústia, dúvida, culpa... Nós não conseguimos nos decidir porque não conseguimos abrir mão do que a gente perde ao escolher uma coisa e não a outra. (E às vezes a gente pode até escolher, mas não realizar essa perda). Não querer decidir, tomar uma atitude e arcar com o que virá em decorrência disso acaba por nos levar a adiar as coisas. Assim, o tempo vai passando e as coisas não se concretizam. E esse acúmulo de coisas por fazer pode, quem sabe, ser mais sofrido do que o estresse de se fazer muitas coisas. Um exemplo bobo e corriqueiro: sair ou ficar em casa à noite? Muita gente se angustia com esse dilema. Aí, do nada, começa a chover e vem aquele alívio — justamente porque aí não tem mais o dilema. Afinal, está chovendo! Conformismo? Devemos sair e curtir a vida? Vai saber...
Fica a impressão de que as pessoas estão cada vez mais distanciadas de si mesmas. Afinal, do que temos medo?
Justamente... Por outro lado, qual o problema de ficar em casa? A questão, na verdade, é essa: a dúvida, ou culpa, que não deixa a pessoa nem curtir plenamente uma coisa nem outra. É assombroso, mas é possível o tempo passar, a vida passar, sem que se tome decisão séria alguma, seguindo o lema “deixa a vida me levar”, com trabalho, televisão, videogames, ou mesmo livros, por mais que estes tenham seu valor, deixando que os outros, as circunstâncias da vida ou o status quo tomem decisões por e pra você.
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