Texto: Liliana Sarquis / Fotos: Amanda Tinoco, Henrique Pinheiro e Karine Knust
Parecia um filme de Hollywood, desses de catástrofe, bem dramático: helicópteros sobrevoando a cidade, ambulâncias e viaturas de bombeiros com suas sirenes estridentes cruzando as ruas. Muitas pessoas com máscaras, andando como perdidas, no meio da lama que secava com o sol e se transformava numa incômoda poeira. Na porta de uma das escolas públicas principais da cidade, o desespero ao ouvir um nome sendo chamado por desconhecidos: era a comprovação de que o corpo de um ente querido jazia ali, ao lado de tantos outros, no chão de um ginásio esportivo que deveria ser sinônimo de alegria. Nas ruas, encontrar mesmo que fosse um colega distante gerava confraternização e também difíceis perguntas sobre parentes um do outro e amigos em comum. Um alívio quando se ouvia um simples: "Está tudo bem”. As notícias ruins pareciam não ter fim, assim como a quantidade de pessoas vindas dos mais diversos pontos: voluntários, especialistas nesse tipo de tragédia, equipes de reportagens, religiosos, homens do Bope, funcionários de vários órgãos do governo do Estado, garis da Comlurb. Veio até a presidente da República.
Não, não era real. Só poderia ser um filme.
Entre a noite do dia 11 e a madrugada de 12 de janeiro de 2011, parecia que o mundo iria acabar. Pelo menos na Região Serrana do Estado do Rio. Uma chuva nunca antes vista desabou sobre a cidade causando um impacto profundo na população, que viu prédios — tanto em áreas mais pobres como nas chamadas "nobres” — desmoronarem como um castelo de cartas. Montanhas "derretiam” sob a força das águas. Nenhuma premonição, nenhum sexto sentido, nenhum pesadelo tinha chegado perto do que estava acontecendo.
Não havia uma única cena de filme, mesmo com efeitos especiais, que fosse tão real. Nenhum Titanic, nenhum Apocalipse Now, nenhum terremoto. Nada se comparava àquilo. Em pânico, as pessoas tentavam uma rota de fuga ao verem suas casas invadidas por lama e pedras e sob o risco de desabamento. Procuravam um porto seguro, bastante difícil àquela altura, considerando que grande parte dos bairros estava devastada. Equipes de socorro não conseguiam chegar a vários locais, para desespero dos bombeiros e do pessoal da Defesa Civil.
Uma verdadeira tropa de elite de heróis anônimos entrou em ação, tentando salvar parentes, amigos, vizinhos e desconhecidos. Não importava a profissão, idade, cor, religião, sexo.
Cada um tentou ajudar como podia, mesmo eles próprios sendo também vítimas. O som do coração falava mais alto. O impossível não poderia existir na cabeça de ninguém, um ato de coragem poderia salvar uma vida.
E começou a luta contra o tempo, uma busca implacável para resgatar sobreviventes. Pessoas do Brasil inteiro e até de vários países do mundo se mobilizaram para ajudar. Não eram estranhos no ninho e sim seres humanos dando uma prova de amor, de solidariedade. Era uma questão de lealdade com a própria consciência.
Um ato de coragem, sim, mas sem que se precisasse alardear por aí: "Somos heróis!”. Ajudar não poderia se transformar numa "feira das vaidades”.
Cumpriram sua missão, deixaram para nós uma lição de amor, sem que isso fosse usado posteriormente em palanques eleitorais, em cobranças públicas ou pessoais.
Foram nossos salvadores invisíveis, sem nome, sem rostos. Chegaram e foram embora da mesma forma, anônimos.
Os dias pós-tragédia nos mostraram os dois lados da moeda: pessoas — vítimas diretas ou indiretas — que procuravam a reconstrução, o renascimento, a sobrevivência, e outras que se utilizavam da catástrofe para lucrar poucos ou muitos recursos. Não foram poucas as histórias de descaso e desperdício. As denúncias de desvio de verbas e de doações surgiram a cada dia e nos chocam até hoje, por questionarmos como alguém pode se aproveitar de uma situação dessas para "se dar bem”? Parecia não haver um código de conduta baseado na ética.
Passados quatro anos, ainda temos uma situação que se pode considerar, no mínimo, surreal: vários corpos simplesmente não foram encontrados, o que, somando-se às áreas devastadas, cujas casas viraram pó, nos leva a suspeitar de que mais vítimas do que aquelas dadas oficialmente como mortas possam existir. Enterrar um ente querido se tornou uma missão impossível para muita gente.
Sim, aquela madrugada não era um simples filme. Era a pura verdade. Uma verdade doída, que deixaria suas marcas por toda a cidade. Nas cicatrizes das montanhas, com suas fendas provocadas pelas chuvas e agora, algumas com seus feios, duros e cinzentos muros de contenção. Nos rios assoreados ou desviados de seu rumo.
Nos escombros que ainda salpicam e enfeam alguns bairros. E pior: no coração de todos aqueles que nunca irão esquecer o mês de janeiro de 2011.
Durante quatro meses uma equipe de A VOZ DA SERRA percorreu locais atingidos e procurou vítimas da tragédia. Nossa intenção não era fazer uma matéria sensacionalista ou que relembrasse simples e cruelmente o sofrimento. Queríamos mostrar o renascimento, a nova vida das pessoas que, claro, nunca terão suas dores extirpadas, mas que buscam, incessantemente, olhar o lado bom da vida e levá-la adiante. Conseguimos parcialmente. O problema é que no meio do caminho encontramos histórias que não podem deixar de ser contadas, que não foram totalmente esclarecidas. Vimos a necessidade de escrevê-las para, quem sabe, como grandes sonhadores que são os jornalistas, possamos fazê-las vir à tona para enfim serem novamente investigadas e resolvidas. Não foi fácil. Ouvimos muitos "não”, até de verdadeiras vítimas da tragédia. Algumas com medo de serem "prejudicadas” (como assim?), outras por não quererem reviver aquele inferno, quando seus corações já se encontram mais calmos, conformados.
Os números da tragédia nos chegaram sempre muito confusos. Foi preciso checar, minuciosamente — na medida do possível — dados, histórias e informações divulgadas na época e meses depois. O que seria apenas matéria de uma página se tornou uma série, com desdobramento nas próximas edições.
A grande superação de quem sobreviveu, esse é o nosso mote, nossa inspiração. Afinal, também fomos vítimas, sofremos, choramos, escrevemos com o coração partido cada palavra sobre o episódio.
Mas, nestes quatro anos, vimos que esta superação, das pessoas, das empresas, da cidade como um todo, é que pode provar que, apesar de tudo, a vida é bela e que o importante é, mesmo com cicatrizes, podermos chegar a um final feliz.
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