Robério José Canto
"Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.”
(Machado de Assis)
No dia 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, nasceu um menino a quem foi dado o nome de Joaquim Maria, que eram os de seu padrinho e de sua madrinha. Apenas mais uma criança pobre: o pai, mulato, filho de escravos alforriados, era pintor — de paredes! Ainda pequeno, amargou a orfandade, mas a sorte lhe adoçou a vida dando-lhe um doce de madrasta. Maria Inês fazia doces, ele os vendia. Ela trabalhava numa escola pública no bairro de São Cristóvão, ele não era aluno, mas parece que assistiu a muitas aulas pelas janelas. E as aproveitou bem. Assim tocavam a vida. Ou era a vida que os tocava em frente.
Pouco se sabe da infância e da adolescência desse brasileirinho. Tem-se como certo que um professor, que também era padre, contratou-o como sacristão. Mal sabia o pobre sacerdote que estava empregando um futuro ateu convicto. Coroinha mais interessado pelo estudo de línguas do que pelas missas, sozinho aprendeu francês, inglês e alemão e latim.
De vendedor de doces, pulou para caixeiro de livraria, a seguir foi aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional e depois revisor em uma tipografia. Aos poucos, foi fazendo amizade com gente importante Rio de Janeiro de então, como Francisco de Paula Brito — escritor, jornalista, editor — e Manuel Antônio de Almeida — autor de "Memórias de um sargento de milícias”. Apesar de mulato e epilético, numa sociedade racista e preconceituosa, sua inteligência e seu talento iam abrindo para ele portas e caminhos.
Começou também a colaborar com jornais e revistas. Foi nomeado ajudante do diretor do Diário Oficial. Casou-se com Carolina, com quem viveria 35 anos de felicidade. Exerceu outros cargos públicos: oficial de gabinete de ministro, membro do Conservatório Dramático, Oficial da Ordem da Rosa, diretor da Diretoria do Comércio. Do burocrata vinham as condições financeiras que lhe permitiam dedicar-se àquilo que sabia fazer melhor do que ninguém: escrever.
E foi por escrever que o menino Joaquim Maria tornou-se aquele de quem o poeta Manuel Bandeira diria que "nenhum escritor o sobrepuja na harmonia de todas as qualidades que faz dele o clássico por excelência”: ou seja, tornou-se Machado de Assis, nome que, quando se fala na mais refinada literatura, diz tudo. Bruxo, por seu talento espantoso; do Cosme Velho, bairro onde morava.
Que primeiro veio a público com modestos poemas. Romancista, estreou com "Ressurreição”, a que se seguiram "A mão e a luva” e "Iaiá Garcia”, obras românticas, sim, mas sem os exageros desse estilo e já prenunciadores da verdadeira revolução que seus futuros irmãos provocariam na literatura brasileira, a começar pelo mais levado deles: Brás Cubas, provavelmente gestado na permanência do autor em Nova Friburgo, entre 1878 e 1879.
Falar de Machado contista e cronista é falar — clichê que, neste caso, se justifica plenamente — de páginas antológicas. Para ficar em apenas três exemplos, citemos "Missa do Galo”, "Uns braços” e "O enfermeiro”. E ainda aprimorou sua poesia, escreveu ensaios, críticas e peças teatrais. Em meio a tudo isso, esteve entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras, da qual se tornou o primeiro presidente.
Mas foi no romancista que sua genialidade plenamente se revelou. Pensamento penetrante, humor fino, ceticismo irônico (ou ironia cética), senso de profunda observação da natureza dos homens e dos acontecimentos. E sempre a elegância da linguagem, o perfeito domínio da narrativa, o estilo contido e ao mesmo tempo abrangente. "Memórias póstumas da Brás Cubas”, "Dom Casmurro” e "Quincas Borbas” abrem todas as listas dos grandes romances brasileiros. Neles, Machado de Assis vai sutilmente expondo sua visão amarga, às vezes cruel da condição humana e da hipocrisia da sociedade. A revelação das mais recônditas e dissimuladas razões da conduta dos homens e das mulheres. Os interesses mesquinhos, o ciúme e a loucura se evidenciam não por meio das ações, que essas são bem poucas, mas pela aguda análise psicológica que desmascara os personagens. Machado veste-os com a elegância da burguesia carioca de então, mas deixa-lhes a alma nua, exposta à perspicácia do leitor.
Parasse por aí e já teria muito além de qualquer outro, mas ainda enriqueceu sua obra com "Esaú e Jacó” e "Memorial de Aires”.
Frasista de primeira, Machado era capaz de condensar em poucas palavras um mundo de significados:
"O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão”;
"Nada há como a paixão do amor para fazer original o que é comum, e novo o que morre de velho”;
"A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo”;
"Ninguém sabe o que se passa no interior de um sobrinho, tendo que chorar a morte de um tio e receber-lhe a herança”;
"O cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício”;
"A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro, tanto melhor: eis aí o estatuto universal”.
E, para culminar, aquela que é, para mim, a mais terrível sentença de toda a literatura brasileira, saída da boca do já defunto Brás Cubas: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Enfim, um brasileiro extraordinário, a quem Monteiro Lobato assim se referiu: "É grande, é imenso, é Machado. É o pico solitário de nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura”. Ou, como escreveu Carlos Drummond de Andrade: "Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”.
Deixe o seu comentário