O Brasil perde o complexo de inferioridade

Mario de Moraes
sexta-feira, 20 de junho de 2008
por Jornal A Voz da Serra
O Brasil perde o complexo de inferioridade
O Brasil perde o complexo de inferioridade

O produtor cinematográfico José Carlos Asbeg conseguiu, finalmente, completar, após seis anos, o documentário O ano que o mundo descobriu o Brasil, lançado este mês. É um relato minucioso e histórico da primeira vez que, em 1958 e na Suécia, o Brasil venceu a Copa do Mundo de Futebol. Sobre o filme ele nos deu esta entrevista exclusiva.

Quando e por que você resolveu relembrar, num documentário, a campanha do futebol brasileiro em 1958 na Suécia?

Em agosto de 2002 me dei conta, pelo noticiário dos jornais, que quatro jogadores daquela seleção haviam falecido em pouco tempo: Gilmar, Vavá, Joel e Dida. E com eles se ia um pouco da história do primeiro título mundial do futebol brasileiro. Então decidi fazer o filme, de acordo com o seguinte princípio: os jogadores, protagonistas, é que contariam a sua própria história. Claro que outros entrevistados, como você, Luiz Mendes, João Havelange, Mário Trigo, Paulo Amaral, Paulo Planet Buarque, Luiz Carlos Barreto, Villas-Boas Corrêa e jogadores de outros países, trouxeram enormes contribuições ao trabalho. Considero um documentário de lembranças afetivas, uma homenagem aos homens que fizeram voltar os olhares do mundo para o Brasil, que nas suas palavras “acabaram com o complexo de inferioridade que nos marcava”. O filme é para que nenhum brasileiro, em tempo algum, jamais se esqueça dos primeiros campeões mundiais de nosso futebol.

Quanto tempo levou para preparar o documentário?

Seis anos. E lhe adianto que, profissionalmente, foram os anos mais felizes de minha vida. Cada encontro era emocionante. Aqueles senhores que generosamente me abriram seus baús de lembranças, a mim, um desconhecido, um estranho. Só posso agradecer a cada um deles, brasileiros e estrangeiros, a generosa acolhida e a confiança. Espero que o filme retrate toda a minha admiração, meu respeito e minha emoção por ter estado diante dos heróis da minha infância.

Quais os maiores problemas que enfrentou?

No início, como todo cineasta brasileiro, o grande problema foi a falta de recursos. Trabalhei quatro anos com minhas próprias economias, viajando, pesquisando, entrevistando, produzindo. Depois vieram os apoios da Eletrobrás, Petrobras e, por fim, do BNDES. Aí enfrentei outro obstáculo: os altos custos do material de arquivo. Estes direitos consumiram pouco mais de um terço do pequeno orçamento com que consegui trabalhar. Finalmente, voltei a enfrentar a falta de recursos, porque as despesas foram bem acima do que o projeto conseguiu captar. Fecho o filme com mais de trezentos mil reais de prejuízo.

Quantas pessoas você entrevistou para obter os dados necessários?

Foram cerca de noventa entrevistas em diversos países, além do Brasil, num total de 130 horas de filmagens: Rússia, Áustria, Itália, França, Inglaterra, País de Gales e Peru. Todas, repito, absolutamente comoventes, emocionantes. Os jogadores estrangeiros que enfrentaram os brasileiros, então, foram de um cavalheirismo extraordinário. Todos elogiaram o time brasileiro e quase todos o apontam como a maior seleção brasileira de todos os tempos. Just Fontaine, o maior artilheiro de todas as Copas, foi categórico nesta afirmação. E olha quem fala... Quando entrei na casa de Fontaine, em Toulouse, Sul da França, eu tremia sem parar, gaguejava e fiz um enorme esforço para me comportar como um cineasta e não como um fã afoito ao encontrar o ídolo. Foram momentos que este trabalho me proporcionou que sei que jamais se repetirão. Agradeço ao cinema por me permitir essas emoções.

Você batalhou bastante para conseguir o depoimento do Pelé, muito importante no caso. Se não o obteve, como preencheu a sua ausência?

Insisti por mais de um ano para conseguir a entrevista com Pelé, mas, infelizmente, não foi possível. Como preencher a ausência do Pelé é uma tarefa quase impossível – não é mesmo? –, tratei de seguir com o trabalho, porque os outros depoimentos eram tão elogiosos a ele, que foi fácil, no fim das contas, prestar a devida homenagem ao maior jogador de futebol de todos os tempos. Espero que ele goste da que o filme lhe presta.

Quantos jogadores da seleção de 58 você entrevistou? Algum (ou alguns) já faleceu após a entrevista?

Felizmente, todos os jogadores que entrevistei ainda estão vivos. Perdemos Paulo Amaral, da Comissão Técnica. Entrevistei Zito, Dino, Pepe, Nilton Santos, Djalma Santos, Moacir e Mazola. Em 1993 havia filmado uma entrevista com Didi, que pude aproveitar no filme. Ficou espetacular.

Victor Tsarev, que no jogo do Brasil com a URSS teve a difícil missão de marcar Pelé, ainda está vivo? Ele relembrou a dificuldade que enfrentou naquele jogo?

Vivíssimo. E é uma figura extraordinária. Um doce de pessoa. Me recebeu no Dínamo de Moscou, onde é diretor. Um touro de forte. Bebemos uma garrafa de vodca juntos. No dia seguinte me levou ao cemitério central de Moscou e visitamos os túmulos de Lev Yashin e de Kuznetsov, o marcador de Garrincha. Deu um depoimento de quase duas horas. Lembrava vivamente a partida contra o Brasil. O relato dele foi assim: “Quando vi aquele garoto magrinho que eu ia marcar, fiquei bem satisfeito, afinal, eu já era um homem de 25, 26 anos, experimentado. Pouco depois, quando o jogo começou, nosso treinador não parava de gritar: “Victor, gruda nele, gruda nele”. Ele se orgulha muito em dizer que foi o único jogo em que Pelé não marcou gol.

Algum (ou alguns) jogador adversário lembrou do Garrincha e dos seus dribles extraordinários?

A opinião praticamente unânime dos estrangeiros é que Garrincha foi o fator de desequilíbrio. Todos elogiam Pelé como o maior jogador de todos os tempos, mas naquela Copa eles ficam muito divididos e quando se decidem, apontam Garrincha como o demolidor das defesas adversárias. Curioso que todos diziam: “Todo mundo sabia como ele ia driblar, mas ninguém conseguia pará-lo. Ele tinha muita força nas pernas, um arranque sem igual e uma velocidade espantosa”. Eles riam ao lembrar das pernas tortas do Garrincha e do medo que os zagueiros tinham dele.

Quais os comentaristas esportivos brasileiros, que fizeram a cobertura jornalística daquela Copa, que lhe deram depoimentos importantes?

Luiz Mendes e você me deram longuíssimas entrevistas ainda em 2003. Foram os primeiros. Aprendi muito com vocês. A partir dos seus depoimentos minha pesquisa foi bem mais direcionada. Tive ainda depoimento de Luiz Carlos Barreto, que foi recheada de deliciosas curiosidades. Ele tem muita verve para contar histórias. Você e o Mendes são grandes memorialistas e devo imensamente à generosidade e ao volume de informações que me deram. Procurei transformar essas informações na busca de emoções, porque o cinema é o espaço ideal para se contar histórias emocionantes, apaixonantes. Espero ter conseguido.

Depois dos vexames de 1950 e de 1954 algum dos jornalistas brasileiros acreditava que o Brasil traria a Taça Jules Rimet?

De novo, você e o Luiz Mendes foram os que mais comentaram a descrença que cercava a seleção brasileira de 1958. Tem uma passagem sua no filme em que você é categórico: o povo, a imprensa, a opinião pública em geral não acreditavam nem um pouco no time, mas os jogadores estavam muito confiantes e sabiam da força daquela seleção. Nunca menosprezaram qualquer adversário, mas sabiam que talento, técnica e equilíbrio não faltariam. E não faltaram.

Destaque as pessoas e os profissionais de cinema que o ajudaram a fazer o seu trabalho, inclusive na parte financeira.

Agradeço muito à Eletrobrás, primeiro apoio ao filme; à Petrobras, que confiou no projeto e trouxe um aporte importante; e ao BNDES, que, através de edital, contemplou o filme com os custos de finalização. Em relação à equipe, sou imensamente grato a Jorge Mansur, diretor assistente, fotógrafo, um companheiraço nas viagens citadas e na solução de todos os problemas técnicos que enfrentamos. Contei com outro grande amigo de longa data e músico de raro talento, Paulo Baiano, autor das músicas e da trilha do filme; Ricardo Malta, fotógrafo, outro querido amigo, filmou as cenas adicionais de futebol que inserimos no material de arquivo de 1958. Os demais membros da equipe são muito jovens: Branca Murat, produtora executiva, que conduziu o barco pelo temporal; Arthur Frazão, brilhante montador, que deu ritmo e fluência ao filme; Pedro Segreto e Marcelo Alt, talentosíssimos artistas gráficos, que fazem o filme passear pela ambiência jornalística dos anos 1950; Patrícia Reis, jovem produtora que tem os pés no chão e a calma de uma veterana; Juliana Maiolino, assistente de edição que enfrentou o material bruto com bravura; Maria Muricy e Simone Petrillo que editaram o som; Roberto Leite, grande mixador, experiente, que deu corpo à trilha sonora; Veruschka Bauerle, que sabe tudo de laboratório e cuidou com carinho da finalização – trabalho este conduzido pela Link Digital, do Rio de Janeiro, que, apesar da alta tecnologia de suas máquinas, permite o que todo diretor espera: espaço de criação artesanal. Sem eles o filme não existiria.

Você já acertou com outros países a exibição do documentário?

Ainda não. Esta é uma tarefa muito mais difícil do que eu imaginava. Tomara que consiga.

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