O bandeirinha é nosso

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Quando o Flamengo conquistou seu segundo tricampeonato carioca (1953-54-55), em jogo contra o América, no dia 5 de abril de 1956 – o campeonato de 55 acabou mesmo em 56 –, foi feita uma música comemorativa, que dizia o seguinte:

O juiz apitou,

Quase sempre uma comoção,

Acabado o jogo,

Flamengo tricampeão!

Em 6 de dezembro de 2009, o juiz Heber Roberto Lopes, do jogo Flamengo e Grêmio, no final do Campeonato Brasileiro, foi uma espécie de regente de um coro internacional. O jogo estava para terminar, o Flamengo vencia por 2 a 1 e a bola estava com o goleiro Bruno, do Flamengo, que demorava para recolocá-la em jogo. Quando resolveu fazê-lo, deu um chutão para a frente. A câmera da televisão acompanhou a bola e, quando esta passou pelo ponto onde estava o juiz, este fazia aquele movimento levantando os dois braços e abaixando-os em direção ao meio do campo, indicando o fim da partida, com a conquista do hexacampeonato pelo Flamengo. O gesto provocou os mais variados sons emitidos por milhões de pessoas em diversos países, sons esses que representavam uma vitória, que por sua vez admitia muitos significados.

É interessante nessas duas situações o papel do juiz. Ele é o responsável pela aplicação das regras, sem as quais não pode haver jogo. Ao mesmo tempo, a identificação totêmica no futebol é tão forte que atravessa o mundo num surto simultâneo de emoções muito fortes.

Comemorações aconteceram entre os índios Kariri-Xocós, que vivem entre os estados de Sergipe e Alagoas, na beira do Rio São Francisco, informa-nos a reportagem de Bernardo Pombo, publicada por O Globo, em 7 de dezembro, que diz ainda o seguinte: “A paixão pode ser medida pelo suor. Os índios rubro-negros trabalham até quatro dias para os comerciantes da cidade mais próxima em troca de uma camisa do Flamengo”.

Na histórica e sofrida Jerusalém, cidade sagrada para judeus, cristãos e islâmicos, conta, no mesmo jornal, a correspondente Renata Makles que em um frio de nove graus, “pelo menos 50 rubro-negros lotaram um pequeno bar de Jerusalém, ontem à noite para torcer pelo sonhado hexacampeonato do Flamengo”. Em Doha, capital do emirado árabe do Qatar, pelo menos uma flamenguista temeu não conseguir dormir, tamanha sua euforia depois do jogo. Existe uma diferença de fuso horário de cinco horas, o que significa que, por aquelas bandas, o gesto do ‘maestro’ Heber Roberto Lopes foi visto depois da meia-noite.

Nelson Rodrigues costumava dizer que o único momento em que as torcidas adversárias se uniam no Maracanã era quando o juiz entrava no campo, para vaiá-lo. Já estive em um jogo em que o cidadão ao meu lado perguntou, quando o juiz entrava: “quem é o ladrão?”. Como o juiz, ao aplicar a regra frustra a liberação de energia do gol porque o jogador estava impedido ou coisa assim, ele só pode ser mesmo ladrão, pois, afinal, ele rouba realmente a cena da comemoração do gol. Um amigo contou-me uma vez que, em um jogo de seu time, a que foi assistir em um pequeno estádio, um ‘companheiro de batalha’, que se sentara a seu lado na arquibancada, informou aos circunstantes, com aquele ar de quem conhece os segredos e tramas que envolvem uma partida de futebol: “Esse bandeirinha do lado de cá é nosso”. Esse, não seria, pois, ladrão, uma vez que favoreceria o ‘nosso lado’.

Mas o juiz é indispensável em um jogo de futebol, mesmo que não se possa deixar de xingá-lo ou desejar que seja corrupto ‘a nosso favor’. Sem a regra e sua aplicação o jogo seria impossível. E este é um lado da paixão do futebol de que pouco se fala. Um campo de futebol, ao mesmo tempo que é um lugar mágico, mitológico, é um espaço onde há regras e igualdade. Pode-se tentar burlá-las, mas elas estão lá, são simples e todos compreendem. Em um país em que historicamente há de falta de lei e de igualdade, de grande tradição escravista e aristocrática, essa paixão popular pelo futebol também pode ser compreendida por este lado: ela pode representar um desejo coletivo por regras simples e claras, que valham para todos, coisa de francês iluminista do século 18.

Aí, certamente, não está uma alienação ou entorpecimento por qualquer droga, mas uma utopia.

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade