Nunca é tarde para recomeçar

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
por Jornal A Voz da Serra
Nunca é tarde para recomeçar
Nunca é tarde para recomeçar

Texto: Karine Knust / Fotos: Amanda Tinoco

Quatro horas da tarde do dia 11 de janeiro de 2011. Um prédio de dois andares desaba no bairro de Olaria: duas pessoas morrem.  Até aquele horário a chuva já havia atingido a marca dos 80 milímetros — quantidade considerada crítica e suficiente para gerar deslizamentos e enchentes. A precipitação parou e tudo indicava que o pior parecia já ter acontecido. Porém, aquilo, era apenas o prenúncio do que ainda estava por vir. 

Às nove da noite uma nova tempestade. Em dez horas, cerca de 300 milímetros de chuva, ou seja, inimagináveis 300 litros de água em cada metro quadrado de Nova Friburgo. Mais de três mil e quinhentas encostas vão a baixo, construções se dissolvem, rios e riachos se transformam em corredeiras da morte, milhares de feridos, uma população completamente desolada. O número oficial de mortos chega a 442. Filhos ficaram órfãos, pais perderam seus herdeiros, famílias foram completamente dizimadas. 

De manhã, já era possível ouvir o barulho das sirenes e dos helicópteros que começavam a rastrear a região para resgatar vítimas e analisar a dimensão dos estragos. Veículos de comunicação do Brasil inteiro começavam a chegar ao município em busca de informações. Devido à densa e tóxica poeira que se espalhava no ar, a população tentava se proteger com máscaras. Por dias as telefonias fixa e móvel permaneceram inoperantes em diversas localidades. O poder público solicitou a ajuda de unidades como Exército e Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e declarou estado de calamidade pública. A tranquila Nova Friburgo era em um cenário de guerra.

 

Histórias Cruzadas

Andrea Bakin, seu marido, Lucio Estevis, e seus familiares moravam em um prédio de quatro andares com quatro residências, no bairro de Córrego Dantas. Ela e Lucio decidiram montar um negócio na garagem. A lanchonete funcionava todas as noites e reunia moradores do bairro e região. Naquele dia, 11 de janeiro de 2011, Andrea foi para casa mais cedo e deixou a lanchonete aos cuidados do marido. Não demorou muito para que Lucio fechasse as portas e fosse para casa. A chuva estava muito forte; provavelmente nenhum cliente iria aparecer no meio daquela tempestade. 

Em poucas horas a família percebeu que a situação era alarmante e era preciso se proteger em outro lugar. Apesar de ninguém ter noção da verdadeira dimensão do que aconteceria, a outra margem do córrego — que fica longe das encostas — parecia ser mais segura. Entretanto, o pai de Andrea não aceitou sair do prédio da família por considerar que aquela estrutura seria responsável por mantê-lo em segurança. Andrea não queria deixar o pai sozinho, mas decidiu levar as crianças e depois voltar. No meio da madrugada, a casa desabou. O único membro da família que insistira em continuar na residência faleceu e só foi encontrado 13 dias depois, em meio aos escombros.

Em uma única noite Andrea perdeu o pai, a casa e o comércio que era um dos sustentos da família.

Ao lado do prédio de Andrea, por volta das onze da noite, Valter chamou sua esposa, Amélia, porque precisava de ajuda para levantar os móveis e eletrodomésticos do restaurante, que ficava debaixo da casa. A água começava a passar por baixo das portas de aço. De repente um poste com fiações elétricas caiu, interrompendo o fornecimento de luz. Era preciso alertar os vizinhos. 

A água já estava na altura do tórax quando Amélia ficou presa entre os refrigeradores que começavam a boiar. Um grupo de pessoas que já estava abrigado em sua casa a puxou pelos braços. Amélia, Valter e alguns vizinhos foram se refugiar no segundo andar; a noite estava realmente aterrorizante, mas eles pareciam estar a salvo por lá.

A aflição que aparentemente acabou naquele momento os enganou. A maior e mais assustadora madrugada de suas vidas estava apenas começando. Barulhos ensurdecedores e gritos desesperados começaram a lhes dar a dimensão da tragédia. O córrego havia se transformado em rio, inundando casas, carregando pessoas e se misturando ao lamaçal das encostas que deslizavam constantemente.

Apesar do desabamento de diversas casas ao redor, por sorte a casa de Amélia ficou intacta. No entanto, o dinheiro ganho no restaurante era guardado dentro de uma vasilha que ficava em uma das prateleiras levadas pela avalanche de barro e destroços. Sem dinheiro, sem uma fonte de renda e com a casa interditada, o agradecimento por ainda estarem vivos se misturava à agonia de não ter para onde ir e nem um trabalho para tentar recomeçar.

 

Quatro anos depois...

Um sonho possível

Sem conseguir deixar o bairro onde cresceu, Andrea, o marido e os filhos continuam morando em Córrego Dantas, mas agora do outro lado da margem do rio, longe das encostas. Sem a lanchonete e precisando ajudar a manter a família, Andrea chegou a trabalhar em empresas próximas de sua casa, mas a forte depressão não a deixava se manter empregada. Ela passava o dia e a noite em casa, com a foto do pai nas mãos, chorando. No entanto, uma conversa franca com seu marido e familiares a fez mudar de atitude. 

Hoje Andrea trabalha em casa, montando peças de moda íntima para confecções. O tempo e o apoio de todos tem feito com que ela se conforme com a situação e pense em seguir em frente: "A lanchonete não tinha completado um ano, estava em fase de teste para ver se ia dar certo. Estávamos progredindo e nossa intenção era legalizar tudo em breve. Claro que na época as coisas eram mais fáceis porque montamos nosso negócio na garagem e por isso tínhamos menos gastos. Mas, mesmo assim, hoje posso dizer que sonho em montar alguma coisa novamente no futuro. Trabalhar no meu próprio negócio e, quem sabe, sustentar toda a família”. 

 

Mãos talentosas

É quase impossível andar pela Avenida Alberto Braune e não perceber uma barraquinha de doces constantemente movimentada em frente à Avenida Ariosto Bento de Melo. Quem olha para atenciosa e simpática Amélia vendendo os atraentes docinhos nem pode imaginar sua história. Em janeiro de 2011, depois de passarem dias sem saber o que fazer, sentados na calçada em frente daquilo que havia sobrado do restaurante, ela e seu marido Valter receberam uma proposta que iria mudar a realidade da família. Na época, a especialidade do casal era fazer comida salgada, almoço, jantar. Mas naquela situação, eles viram que não poderiam escolher muito. O restaurante não iria voltar a funcionar. Era hora de fazer outra coisa; além do mais, nunca é tarde para aprender. 

Um dos vizinhos, que viu a casa sendo levada pelas águas da tempestade, era doceiro e resolveu ajudar o casal. Joel propôs um negócio. Era simples: Amélia Condack e seu marido Valter Jordão iriam aprender a preparar os doces que seriam levados para as ruas e, ao mesmo tempo, ajudariam Joel nas encomendas. Com a sensação de dever cumprido e querendo recomeçar longe das lembranças daquela inesquecível madrugada, o doceiro e sua família se mudaram de Nova Friburgo e deixaram a missão de continuar o trabalho nas mãos do casal. A iniciativa deu certo. Hoje, no espaço em que funcionava o restaurante, existe uma fábrica de doces onde toda a família põe, literalmente, a mão na massa. 

"Antes de trabalhar com os doces, perambulávamos pelas ruas do bairro, até que Joel, mesmo com tudo que aconteceu a sua família, nos ajudou. Aprendemos tudo com eles e somos eternamente gratos por isso. Começamos a vender de porta em porta, depois vendíamos em frente à rodoviária urbana, até que conseguimos nosso ponto atual. Além da barraquinha do Centro, montamos outra em Olaria. Não foi fácil chegar até aqui, mas hoje somos uma empresa legalizada que consegue sustentar a casa, não só a minha, mas também a dos meus filhos. Todos trabalham no Docinhos da Amélia”.

"Eu era caminhoneiro. Depois da tragédia vi que precisaria ajudar meus pais, estar junto da minha família numa hora tão difícil. Além disso, eles ficavam muito preocupados comigo, na estrada o tempo todo. Resolvi largar meu trabalho, acreditei no novo negócio da família, vi que poderia dar certo. Mas para crescer, fiz questão de legalizar a empresa. Assim pudemos fazer contratações, assinando carteira, ou seja, tudo certinho”, contou Diego, filho de Amélia. A tragédia, certamente, será sempre lembrada por eles, mas a história de superação desta família é um exemplo de que a união, a fé e a força de vontade podem mover as montanhas. Ou, neste caso, re-mover. 

 

Além de vender doces na barraquinha, Amélia recebe encomendas toda semana

 

Toda família trabalha produzindo os Docinhos da Amélia

 

Onde existia o restaurante hoje é a fábrica de doces de Amélia e sua família

 

A reconstrução das empresas

Após a tragédia, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) criou o "Projeto de Recuperação Econômica e Apoio às MPE de Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro”, que teve como um dos propósitos promover o ressurgimento dos negócios atingidos pela enchente e também de novos empreendimentos. Este projeto contou com sete etapas, desde atendimento emergencial — só em Nova Friburgo, foram 2.460, de janeiro a fevereiro de 2011 — a ações de análise e estudos de eixos estratégicos voltados para a recuperação da Região Serrana e teve um investimento de mais de R$ 3 milhões. A iniciativa deu certo, tanto que em 17 de janeiro de 2011 o número de empreendedores individuais que contavam como cadastrados em Nova Friburgo era de 1588. Em novembro do mesmo ano, este número saltou para 2918, ou seja, um aumento de mais de 83%. 





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TAGS: tragédia | economia
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