Novos tempos da política

quarta-feira, 03 de outubro de 2012
por Jornal A Voz da Serra
Novos tempos da política
Novos tempos da política

Maurício Siaines
O cientista político friburguense Jairo Nicolau lançou no último sábado, 29 de setembro, na Livraria Arabesco, seu livro “Eleições no Brasil”, editado este ano pela Zahar. Ali ele apresenta o modo como as eleições vêm acontecendo no Brasil desde o império e revela o seguinte: “As instituições eleitorais em vigor no Brasil—país que possui o quarto maior eleitorado do planeta, perdendo apenas para a Índia, Estados Unidos e Indonésia—são um caso de sucesso”. Isto porque o sistema eleitoral agrega cada vez mais cidadãos, com poucas possibilidades de fraudes e outros problemas.
Jairo conversou com A VOZ DA SERRA na sede da Associação Friburguense de Imprensa (AFI), no centro da cidade, pouco antes do lançamento do livro, discutindo questões da política atual, a partir de um gráfico por ele apresentado, segundo o qual a participação nas eleições vem aumentando em curva ascendente através de diversos momentos da história do Brasil. Abaixo, trechos da entrevista.

 VOZ DA SERRA – Nesse gráfico apresentado em seu livro sobre a participação nas eleições fica evidente que cada vez mais as eleições tiveram significado, cada vez mais gente participou delas. Seja como for, alguma coisa vem acontecendo, não é?
Jairo Nicolau – Sem dúvida. Nesse gráfico, na linha superior, representa-se o número de adultos inscritos para votar, a proporção de adultos que tiraram o título [de eleitor]. Por exemplo, em 1945 temos só 30% dos adultos com título. Dito de outra maneira, 70% dos brasileiros que tinham idade para se alistar como eleitores, não o faziam por alguma razão. A principal delas era a proibição de analfabetos votarem. É um tema que percebi ao longo desta pesquisa: como o analfabetismo foi uma barreira pesada para o crescimento do eleitorado brasileiro.
Agora, é um crescimento que não para durante o regime militar, por razões também [ligadas] ao crescimento demográfico do país. Depois do recadastramento de 1986, [o total de inscritos para votar] chega à faixa de 95%. Hoje, de cada 100 cidadãos adultos, em torno de 95 têm o título [de eleitor]. Desses 5% que não têm o título, [muitos podem ser] pessoas para quem o alistamento é facultativo, com mais de 70 anos ou analfabetos. Mas não sabemos quem são essas pessoas, não há pesquisas. De qualquer modo, [o gráfico] mostra uma história bem-sucedida de incorporação, de crescimento da população eleitora no Brasil de uma maneira constante e estável.
A linha de baixo mostra a participação, isto é, quantos adultos vão às urnas. De cada dez adultos, oito, mais ou menos, vão às urnas a cada eleição. É uma marca muito boa comparada com outros países. Não temos nada a dizer [contra] a participação política no Brasil, no sentido estatístico. Podemos conversar sobre a parte substantiva.

AVS – E aí está uma questão: a relação entre eleições e democracia. O fato de as eleições terem se aprimorado, como você demonstra no livro, por si só, não atesta a profundidade da democracia brasileira, mas diz alguma coisa, não é?
Jairo – Sim, temos, infelizmente, essa tendência a olhar de maneira um pouco pessimista para nossas escolhas institucionais, para as coisas criadas no Brasil. É aquilo que o Nélson Rodrigues chamou de complexo de vira-lata. Do ponto de vista da mecânica de votação, do procedimento que vai desde o momento em que o eleitor é alistado para votar, até o último momento em que ele aperta a tecla “confirma”, esse processo de votação que o Brasil foi inventando—um pouco por conta dos legisladores, um pouco por conta da ação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)—provavelmente é o mais moderno do mundo. Mas é como se em um campeonato de futebol estivéssemos falando das regras, ou seja, como os pontos são conquistados, os dias dos jogos, a organização dos juízes, os horários dos jogos. Do ponto de vista da logística, somos imbatíveis. Isto não quer dizer que tenhamos uma elite política de alto nível, que o eleitor faça as melhores escolhas, que não existam problemas como compra de voto, problemas que vão desde quando o eleitor sai de casa até chegar diante da seção eleitoral. Muitas coisas acontecem, não é? Ele pode vender seu voto, pode ser vítima de pressões, como acontece ainda em algumas áreas do Brasil. Não podemos esquecer que a eleição [para os cargos de deputado federal e estadual] de 1994, no estado do Rio, foi anulada por fraude de apuração. Hoje temos um sistema eficiente e ninguém mais fala de fraude de apuração ou de votação. Realmente, nós criamos um sistema de votação que não podemos subestimar. Por exemplo, nas eleições da Venezuela, no domingo que vem, 7 de outubro, o tema central é a fraude. Quem acompanhou as eleições no passado no Brasil, sabe como as fraudes eram algo que afetava eleições municipais, eleições para deputados. Hoje, isto não é problema. O problema para nós, hoje, é compra de votos, gastos de campanha, caixa dois. Ninguém mais fala que as eleições são fraudadas.

AVS – Falando de problemas, a pouca definição ideológica dos partidos não é um deles?
Jairo – Sem dúvida, mas isto tem menos a ver com as regras do que com a cultura política, com a história institucional do Brasil. Temos 30 partidos registrados. Talvez falte ao Brasil um partido de direita mais orgânico, mais explícito. Temos vários matizes de partidos de esquerda, partidos clientelistas, partidos de centro. Mesmo que partidos de direita não se assumam como tal, também têm uma prática e defendem ideias à direita. O problema é que esse aspecto não é decisivo, não é fundamental para organizar a política no Brasil. Para alguns eleitores, um contingente pequeno de eleitores, identificar-se como de esquerda ou direita, ter preferência por algum partido ainda conta. Mas, para a grande maioria da população, a decisão pelo voto é muito pragmática, em função do menu daquela eleição. Para o executivo, cada eleitor faz sua conta, considera se o candidato já foi um bom prefeito—no caso de tratar-se de candidato que já exerceu o cargo—, como está a cidade. Para o vereador as razões são de toda ordem. Dificilmente, você vai conversar com um amigo que vai lhe dizer que vota em tal vereador por ele pertencer ao seu partido, que vai votar no vereador tal por ele ser da sua ideologia. Em geral [justifica o voto dizendo]: “ele é meu amigo”, ou “ele é uma boa pessoa”, “ele foi à igreja”, “ele é do meu clube”, “ele é do bairro”. São laços culturais e sociais, mas dificilmente é ideologia.

AVS – Também muitas questões de afetos, misturados com interesses clientelistas e de compadrio. A questão da afetividade é muito presente, não?
Jairo – Sim, na política brasileira, as escolhas institucionais feitas contribuíram para isto. Desde o império—falando de eleições municipais—a Câmara Municipal de Nova Friburgo, por exemplo, foi uma casa importantíssima para a organização da cidade. Não havia prefeito, era a Câmara que tocava a vida da cidade. Mas temos uma tradição, uma cultura política na qual o eleitor sempre vota em nomes. Reforça-se, assim, essa nossa cultura de matriz portuguesa em que os laços pessoais são importantes, haja vista a grande dificuldade que temos no Brasil para lidar com a questão do compadrio na política, com o fato de algumas pessoas colocarem seus parentes para trabalhar. As pessoas não entendem não poder proteger seus parentes. A política brasileira é muito pessoalizada e colocar sobre ela um verniz ideológico não é simples. Claro que sempre se encontra alguma organização nos partidos, podem-se encontrar diferenças doutrinárias, mas para grande parte do eleitorado não é isto que motiva o voto, o voto é muito pessoal.

AVS – Neste ponto, cabe lembrar que a antropologia pode ajudar bastante a ciência política.
Jairo – Certamente, precisamos da antropologia. São os valores, as questões pessoais, as avaliações que os eleitores fazem do comportamento, da figura do político. Conheço um pouco como é feita a vida partidária em outras democracias: um eleitor inglês, por exemplo, vai às urnas e vota, digamos, no Partido Trabalhista e às vezes nem sabe quem é o deputado de seu distrito, só quer saber do deputado que vai ser o primeiro-ministro. Às vezes nem aparece o nome do candidato e o eleitor marca a sigla do partido. É uma forma de pensar a política a partir das organizações partidárias, enquanto que no Brasil temos outra cultura, outra história.  

AVS – No caso da Inglaterra a que você se referiu, é muito tempo de história completamente diferente, desde o século XVII.
Jairo – Claro, eles têm uma tradição de organizar a política desta maneira.

AVS – E será que é necessariamente melhor que a nossa experiência?
Jairo – Acho que a gente nunca vai ter no Brasil—fazendo uma frase um pouco peremptória—esses partidos que, a rigor, também já não existem muito na Europa. Os partidos lá têm muito mais importância que aqui, mas também já não são o que foram, porque já chegamos à era da televisão como intermediadora, muita gente milita em outras organizações que não os partidos. Em todos os países europeus, nas últimas duas décadas os partidos têm perdido acentuadamente o número de filiados, pessoas militantes ... então, há uma tendência a que os partidos se tornem mais organizações eleitorais, quase que firmas de mercado. É muito diferente do que eram os partidos dos anos 1940-50, que eram organizações de militância. Isto acabou lá. E aqui não tenho ilusões de que um dia cheguemos a ter partidos de militância, não vamos chegar a isto. Claro que a gente sonha em ter partidos um pouquinho mais organizados, um pouquinho mais doutrinários, mas nunca vamos ter partidos que já não existem sequer na Europa.

AVS – Isso mudou muito. Mas os partidos precisam crescer com a vida social, em espaços onde ela aconteça.
Jairo – É interessante essa questão. A gente fica sonhando em ter partidos mais ideológicos que se movessem em função de seus programas. Teríamos que ler os programas de cada partido, depois compará-los e ver o que consideraríamos o melhor para a cidade e escolher. Isto não existe. No Brasil, isto está longe de acontecer. E esses espaços, sobretudo em uma eleição municipal, são decisivos: as conversas, as avaliações que são feitas na praça, nos salões, nas escolas, nos pontos de ônibus. Isso cria movimento de opinião. Alguns políticos crescem muito em função desse movimento de opinião. Friburgo é uma cidade de altíssima sociabilidade, com muitos clubes, bandas, escolas de samba, folias de reis, times de futebol—um deles na primeira divisão estadual e quase foi para a terceira divisão nacional. Petrópolis, por exemplo, não tem um time assim, não tem escolas de samba, é muito mais fechada em sua sociabilidade. Friburgo tem sua sociabilidade aberta, mas isto não se traduz em uma atividade partidária, política, no mesmo grau. Parece que a sociabilidade vai à cultura, vai ao lazer, mas isto não transborda para uma atividade militante. Mesmo os partidos de esquerda em Friburgo nunca disputaram uma eleição para valer, depois da redemocratização. A vida sindical em Friburgo também não é tão ativa. A mobilização cívica foi alta em relação às chuvas [de janeiro de 2011], mas não foi uma mobilização política de pressionar os governantes, fazer passeatas, movimentos fortes na cidade. É como se o cidadão friburguense gostasse da sociabilidade do clube, dos amigos, mas não se encantasse com a sociabilidade partidária, eleitoral. Claro que nas campanhas a coisa se anima como nas outras cidades brasileiras.

AVS – Será que não estamos vivendo uma época em as pessoas se mobilizem para defender causas específicas e não grandes projetos políticos?
Jairo – Isto ainda tirou dos partidos uma função, aqui e fora do Brasil. Até a década de 1980, os partidos tinham monopólios, era quase impossível pensar-se, por exemplo, em movimentos sindicais na Europa fora dos partidos, isso não existia. Mas quando os chamados novos movimentos sociais apareceram—movimentos feministas, movimentos de identidade, movimentos pacifistas, movimentos de temas alternativos—tiraram quadros dos partidos: muitas pessoas começaram a sentir que nesses lugares [dos movimentos sociais] elas se sentiam mais importantes, mais acolhidas e se identificavam mais com essas atividades do que com atividades partidárias. A atividade partidária tem uma direção: ocupar o Estado, ocupar segmentos do governo para fazer políticas específicas. Todo partido, quando é criado, tem a ambição de assumir o governo, assumir o poder. Às vezes, em um centro de direitos humanos, em uma associação de luta contra o racismo, quem está envolvido com isto sente logo o retorno imediato: organizam-se reuniões em que as pessoas dão depoimentos, fazem manifestação em uma escola, uma ação na Justiça. Os movimentos sociais muitas vezes têm resultados. Assim como a filantropia, que envolve tanta gente, através das religiões.
Nos anos 1980 [no Brasil], boa parte do movimento social estava atrelada à vida partidária, hoje esses movimentos sociais, ou organizações da sociedade civil já ganharam certa autonomia. Não temos dados no Brasil sobre isto, mas provavelmente, hoje, existam muito mais cidadãos envolvidos com atividades filantrópicas via religião, ou associações de lazer ou esportivas, do que envolvidos na militância partidária.

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