“Descobri que lá era difícil viajar para outro país. Dirigiam carros, usavam computadores, mas para tirar o passaporte precisavam de um dado desconhecido para a maioria da população: a data de nascimento”
Parte 1
O voo de Sidney para Port Moresby havia sido tranquilo. Da pequena janela, a vista constante das águas transparentes da Grande Barreira de Corais australiana me fazia imaginar as belezas da maior biodiversidade marinha do mundo. Em poucas horas eu já estaria mergulhando entre seres desconhecidos, entre milhares deles. Partindo da capital da Papua Nova Guiné, a viagem recebeu novos temperos, sabores de uma terra fantástica que parecia ter saído dos livros de Júlio Verne que eu devorava havia poucos anos. Como nas viagens do Náutilos, de Vinte Mil Léguas Submarinas, os dias que se seguiriam trariam experiências que eu não poderia imaginar. O pequeno avião não estava a mais de 300 metros acima das montanhas que exalavam as brumas de seu despertar. Sobrevoamos a pequena Madang, ao norte da ilha, onde as árvores altas da floresta fechada exibiam os suspiros do amanhecer para as pequenas casas que apareciam tímidas, enfileiradas em meio à névoa. Lembrei-me das manhãs de neblina de Nova Friburgo, das vezes em que descia a serra só vendo o colchão de nuvens rodeado por montanhas.
No centro da cidade, de frente para o Oceano Pacífico, pensei em como os portugueses, descobridores da ilha, foram exploradores vorazes. Difundiram para todo o mundo suas descobertas, principalmente para o Brasil. A manga, a banana, o abacate, os frutos do meu quintal estavam todos ali, espalhados sobre esteiras, embaixo de grandes árvores, onde mulheres negras de cabelos altos e saias coloridas os vendiam sentadas no chão. Em volta das árvores, meninos com atiradeiras tentavam acertar pássaros negros escondidos entre as folhas. Quando o primeiro deles caiu abrindo as asas me dei conta de que realmente era um mundo diferente: não era um pássaro, mas um morcego gigante.
Na banca de jornal, um desenho improvável de um tubarão distraído em cima de um coqueiro, pego de surpresa por um tsunami. Outro ataque de crocodilos de água salgada na cidade e o prefeito pedia para evitarem tomar banho próximo das feiras livres. No país em guerra civil, o maior vilão local havia feito outra vítima: mais uma pessoa morta, atingida por um coco.
Acaba o horário do almoço e as crianças somem, todas nas escolas em tempo integral. A caminho do hotel, o volante do lado direito do carro era a menor novidade. Uma mão levantada e paramos para dar carona a um desconhecido. Por que não? Ele estava viajando a pé rumo ao norte. No corpo somente um short e uma camisa de malha onde se dizia que havia sobrevivido à erupção de um grande vulcão, poucos anos atrás. Tinha almoçado na casa de outro desconhecido, que lhe oferecera comida porque estava com fome. Por que não haveria de ser assim? Mais alguns metros e o carro anda lentamente: uma família caminha pela beira da estrada, não poderíamos jogar poeira em seus olhos. Na conversa ao longo do caminho descobri que lá era difícil viajar para outro país. Dirigiam carros, usavam computadores, mas para tirar o passaporte precisavam de um dado desconhecido para a maioria da população: a data de nascimento. Me senti desidratado. A moral, os conceitos, os valores, a argila de que somos feitos estava virando pó.
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