Notas de um moleque desocupado - 6 de setembro

por Daniel Frazão
sexta-feira, 05 de setembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Estou em Paris. Tudo é muito bonito, antigo e parisiense. Desbravei a Suíça e agora estou aqui. O futuro ruge como uma longa estrada de concreto à minha frente. Sempre que olho para frente, a visão é ofuscada pelo sol que queima o horizonte.

Passei pelo Quartier Latin e comi uma pizza na calada da noite que custa a tombar. É bom sentar para comer e se afastar do formigueiro de turistas e da cacofonia de idiomas que brotam dos flashs de máquinas fotográficas made in Japan.

O museu Orsay é legal pra caramba. Van Gogh está lá, sufocado por fotografias digitais. Eu me pergunto o que ele acharia disso. Olhei bem de perto para o seu auto-retrato. As pinceladas, o traçado do alto-relevo, as linhas tortuosas que refletiam sua alma tortuosa ficaram a meio centímetro do meu nariz. Pissarro também. Com Pissarro foi estranho; no dia anterior eu tinha sentado no túmulo dele para ver a banda passar. Para sentir a presença de Pissarro e de Van Gogh no museu foi preciso abstrair a horda de turistas que, de tão frenética, nem olha para os quadros, apenas para as reproduções dos quadros na telinha de suas máquinas digitais.

Hoje entrei na livraria onde passaram Hemingway, Joyce, Kerouac e Henry Miller. Falo da famosa Shakespeare & Company. Comprei Visions of Cody, de Jack Kerouac. Não fiz mais que minha obrigação. Saindo da Shakespeare & Company com um livro de Kerouac nas mãos, senti como se tivesse um trunfo na vida. Foi como se Kerouac despontasse na esquina do Quartier e dissesse “ei, estou por aí, vamos lá!”.

Fim de tarde ensolarado. Segui até as margens do Sena, todo feliz com o livro do Kerouac na mão. Minha barriga começou a roncar e lembrei que haviam se passado horas desde que tinha comido pela última vez. E senti como é ser um escritor faminto em Paris. Igualzinho a ser um escritor faminto no Brasil. Estômagos sempre roncam no mesmo idioma. Vi que esse negócio de ser escritor faminto não está com nada e fui comer alguma coisa. Depois, sentei-me bem no meio da Pont des Arts para ver o sol se pôr e a banda passar, como fiz no túmulo de Pissarro.

O sol tombou sobre o Sena às nove e pouco da noite. O verão europeu tem dias longos e noites curtas. Ao meu redor, a ponte fervilhava de calor humano. Caras sentados e tocando saxofone. Caras sentados com suas namoradas. Grupos de pessoas sentadas, conversando e tomando vinho no gargalo. Caras solitários, sentados, lendo ou olhando para o vazio. Ninguém era melhor que ninguém. Nem pior. Talvez fosse pura impressão de estrangeiro que olha para uma terra impressionista. Mas isso não importa. O que importa é o que é sentido, não o que de fato é.

Levantei, cruzei a Pont des Arts e atravessei os arcos do Louvre na direção da casa de minha tia.

Kerouac reapareceu e disse “ei!”. Era só um fantasma, mas e daí?

É isso. Cá estou; sem saber o que vai ser nem o que vou ser; tentando mudar o mundo antes que o mundo me mude.

Hoje fecho essa crônica do mesmo jeito que vi meus ídolos fechando vários de seus escritos.

Paris, França. 23/08/2008.

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