Notas de um moleque desocupado - 5 de junho

Por Daniel Frazão
sexta-feira, 04 de julho de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Dobrou a esquina, sem nada melhor para fazer. Parada sob uma sacada, linda, reluzindo ao meio-fio: uma lata de lixo.

– Temos muito em comum.

A lata de lixo o olhou indiferente. Sabia do que ele falava.

– Sim, temos muito em comum.

– Nós dois nos sentimos um lixo.

– Você não se parece com lixo – ela disse.

– Ah, mas ninguém é aquilo que parece ser. Veja só, pareço um analista de sistemas.

– Sempre pareci uma lata de lixo, mas nunca me senti como tal. Eu me sinto como um ditador fascista.

– Compreendo – ele disse.

Aquela lata de lixo sabia mesmo conversar. É raro encontrar qualquer forma de vida que saiba conversar.

– Todo mundo se sente um lixo de vez em quando – disse o analista de sistemas.

– É por isso que você está aqui.

– Pois é.

– Você não me parece um cara muito animado. Parece mesmo um analista de sistemas.

– Na verdade, sou animadíssimo. Só que nunca sobra tempo para me animar.

– O riso é o melhor remédio.

– Não quando você ri de nervoso. Aí acaba ficando com as bochechas doendo.

– Você é bem lúgubre. Ainda bem que só sou lixo superficialmente. Não gostaria de me sentir assim. Prefiro continuar me vendo como um ditador fascista.

– Isso é sensato. A História nos prova que grandes montes de lixo alcançaram sucesso vendo a si mesmos como ditadores fascistas.

A lata de lixo esboçava um tímido sorriso. Achava graça do analista de sistemas. Com certeza era muito mais engraçado do que se sentir um ditador fascista.

– Se eu fosse você, tomava uma dose – ela disse.

– Não bebo.

– Então não há nada a fazer.

– É duro enfrentar os problemas. Não estou falando de problemas práticos, como dívidas, doenças e desempregos. Falo de coisas que acabam com sua alma. Isso derruba qualquer um.

– Para quem não bebe você manja muito de papo de bêbado.

– Taí a grande tragédia. Viver uma existência de bêbado quando se é abstêmio.

– Não esquenta. O mundo inteiro não passa de uma grande ressaca.

Ele sorriu e passou o braço em torno da lata de lixo, num gesto cordial de camaradagem.

– Você está certo.

– Daqui a pouco vai começar a escurecer...

O céu ganhava uma tonalidade avermelhada. O analista de sistemas se levantou do meio-fio e estalou os ossos cansados. Era um longo caminho pela frente.

– Acho que já vou indo.

– Está bem. A gente se vê.

Era estranho o modo como simpatizara com aquela lata de lixo, e ainda mais estranho a total indiferença que ela nutria pela condição de dejeto da sociedade. Ela simplesmente não se importava. Permanecia ali, no asfalto em ebulição, resplandecendo com o sol de fim de tarde enquanto se via como um legítimo ditador fascista.

O analista de sistemas já estava se afastando quando se virou e perguntou:

– O que é que vai fazer amanhã?

– Não sei; talvez conquistar a Polônia...

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